21.9.05

paritosh e joyce ann



Molhei meu dedo com North Wind, tento acordá-la com perfume, suspirou talvez dentro de um sonho e nem abriu seus olhos verdes. Vou à sala e ponho Enya na vitrola, encantadora. São nove e quinze, mas o tempo é coisa que não há. Ligo o computador, sinto cheiro do café passando, o vento refrescante vem do sul, o perfume foi Suzana quem me deu, o disco, Janaína que escolheu, mas a musa, trazida por Lúcifer e Diana. Eu — nascido de Iracy.
As circunstâncias que me envolvem são todas feitas de amor e açúcar. Há uma conjunção magnífica de fatores contribuindo para que tudo fique perfeito nesta manhã em que o próprio Deus se anuncia para mim, fazendo conspiração com meus desejos.
Erotizo o ternura que lhe dou agora.

A realidade cai de cabeça naquilo que eu sonho!

A propósito, esta noite sonhei que pulava de um penhasco e não caía: planava, e tinha completo domínio sobre onde pousar. É a primeira vez na minha vida que sonho estar voando. Acordei com a palavra “alcantilado” em minha boca. Não sei o que significa.

Anos mais tarde, quando morei num flat em São Vicente por três ou quatro anos, eu sonharia que estava levitando, deliciosamente, deitado de costas, e com uma bela menina vestida de azul por cima de mim, abraçada, como se dançássemos na horizontal.


Há um restinho de poeiras antigas espalhadas por sobre mim. Logo eu me livro delas. Na verdade, é a velha Lei das Possibilidades estraçalhada por um golpe de sorte. Ontem jantamos com Janaína. Pizza, tomates secos, muzzarella, rúcula, quatro queijos. Tomamos um Santa Helena, que não conseguiu nos fazer a cabeça e convidei-as para um Mateus branco em minha casa. Duas horas de conversas, entusiasmo, chocolates, poesia, pedacinhos de laranja.
Jenny Lou e Diana se despedem, vão dormir aqui hoje. Mais tarde Paritosh leva Janaína, e eu vou andar na praia por um tempo. Quando volto, o sátiro, que chegou antes de mim, está abrindo a porta do quarto em que as meninas dormem. Pé ante pé, entrei com ele. Diana (que surpresa!), calcinha preta, deitada de bruços e a bundinha virada pra si mesma. (Silêncio). A cortina balançando brancuras, o ar fresquinho da madrugada-quase nos inunda de arrepios. Swami sugere com um gesto de cabeça que eu acaricie Diana — mas não quero, apesar das lembranças deliciosas que tenho dos seus seios. Ele sabe, o sátiro lúbrico, que hoje nós dois queremos a mesma coisa:
— Jenny Lou!
Quando ambos fazemos a mesma escolha, um dos dois tem que ceder, e eu cedo quase sempre porque sou compreensivo — além de discípulo. Jenny Lua dorme como dorme uma boneca, e só se vê seu pé direito saindo do lençol prateado que finge protegê-la. Não sei bem o que fazer, se saio já do quarto ou se mais tarde.
Não será pecado deixar uma lua nova num quarto crescente?
Trago o creme que ela gosta, perfumado, e coloco nas mãos do mestre toda aquela pompa e circunstância. Jenny Lou se mexe, parece acordar, junta os lábios, move a boca como estivesse sentindo o gosto de um sonho. Paritosh começa a descobri-la com uma delicadeza furtiva que jamais havia visto nele — pouco a pouco, a partir dos pés. Faz tudo em silêncio profundo, como se fosse um ladrão de gostosuras furtando a si mesmo.
Diana se vira na cama, sua bundinha parece agora que tem voz. Paritosh pára um pouco, olha para uma e para outra sem mover a cabeça, me olha também, sorri, coloca o indicador em frente à boca fechada, e diz:
— Shhh...
Jenny Lou está quase toda descoberta.
Agora é a vez de derramar creme em minhas mãos, esfregar a suavidade de uma na outra, como se isso tudo fosse tudo. Passo o creme primeiro nas mãos dela, nos braços nus, tomando cuidado para que não se acorde. Passo tão levemente que é como se não a tocasse. Três anéis na mão direita, dois no mínimo da esquerda — os mesmos que ontem tirei com minha boca. Paritosh me puxa, quer talvez que eu saia do quarto: ele acha que ainda tenho restos de preconceitos morais pequeno-burgueses que não combinam com as delícias da inocência. Vai passando creme no corpo todo dela, exceto onde não lhe permite o short que ela veste. Enfia seus dedos por debaixo da camisetinha, e eu ali, em pé aos pés da santa cama, surpreso como o sono dela é profundo. Paritosh toca mais forte, e eis que ela se acorda, sem sobressaltos, como já sonhasse com isso. Ela nos olha, simulando não entender o que se passa — além do creme.
Agora sou eu que lhe digo:
— Shhhh...
Ela olha para Diana, que dorme tranqüila na outra cama, busca talvez cumplicidade. Inclino-me, beijo-lhe a testa e sussurro:
— Você é linda, menina...
Ela sorri — e fica mais ainda.
Além do creme que passo há um limite que não.
Já Paritosh pensa mais longe. E vai. Lembro-me de um dia ter-me dito: "Vou sempre até o limite, Edson. Mas, quando vejo que terei mesmo de ultrapassá-lo, eu o desloco um pouco mais pra frente. E assim por diante, sucessivamente."
Um de nós dois vai ter que sair. Se Paritosh é o sátiro, tenho que ser cavalheiro — e me retiro. “Acho que terei de derrubar a Lei das Probabilidades com dois golpes de sorte” — penso.

Eu tenho “know-how”, mas ele, “savoir-faire”. A sala agora é Sodoma e meu quarto, Gomorra. Só espero que não caia sobre nós dois uma baita chuva de fogo e de enxofre... Paritosh permanece em Gênesis — como depois me contou — vibrando como se fosse de novo a primeira pessoa de um testamento antigo.
— Jenny Lou tem um colarzinho de couro, com pingente de ametista e dois brinquinhos de prata — ele me diz.
E eu — brinco de Van Gogh na orelha de Jenny Lou.
Seus olhos me capturam!
Mas a clavícula, seu melhor adorno, se destaca quando ergue as mãos pra me abraçar. Talvez ela não queira mais do que amor, e eu quero exatamente isso, muito mais! Desvencilho-me do abraço, tiro-lhe a camisetinha cor de anuência, e tudo se esclarece de novo na penumbra do meu quarto. Jenny Lou me olha como se esperasse uma surpresa em que cada gesto que faço. Suspiro gostoso no seu lóbulo. Passo-lhe creme nos seios — tão pequenos, poéticos, encantadores, tão significantes! — que os Demônios da Poesia mandam-me chamá-los, respeitosamente, de peitinhos.
Olho dentro dos seus olhos e lhe digo:
— Jenny Lou, volte a dormir, que vou ficar aqui, fazendo amor com teu silêncio.
— Estou sem sono — ela sussurra, quase ronrona, e move as pernas como se movesse o mundo. Vão se abrindo em minhas mãos, delicadas, as alavancas de Arquimedes, os joelhos de Jenny Lou. Les genoux de Jenny Lou. A música na sala passa a ser de Jon Bon Jovi — e concluo alegremente que meu discípulo amado não abandona o mestre em seus caminhos escuros.

I celebrate myself.

Mas fico em dúvida. E quando fico em dúvida entre o orgasmo e a dúvida, escolho sempre o primeiro. Suspiro de novo, respiro, transpiro, e me ajoelho aos pés da musa. Chupo-lhe os dez dedos pequeninos como se chupasse um cachinho de uvas maduras lá na parreira do céu. A princesinha se contorce de uma coisa que só pode ser tesão, e meu amigo, suportavelmente duro, força as grades da prisão de brim azul em que se encontrar. Dou-lhe então a liberdade que precisa, ele salta como tivesse vida própria, feito gato.
Sete vidas próprias.
Será a primeira vez que a cabeça intelectual do meu cacete vai tocar a pele lisinha dessa musa. Ocasião mágica, até religiosa — eu diria. Por isso ele fica respeitosamente duro. E maduro.

Sempre com malícia, nunca com maldade!

“Jenny Lou, feche os olhos” — peço-lhe, e vejo suas pálpebras se abraçarem. A delicadeza inocente de um prepúcio inteiro tocando-lhe os pés. Me lembro de Suzana. Meu sexo vai subindo, passa cuidadoso pelos tornozelos da menina, se detém um pouco nas canelas. Duas gotas de óleo de amêndoas lhe dão mais brilho. Ele se entusiasma e vai subindo, vai subindo cada vez mais — porém não passará dos joelhos de Jenny Lou. Jamais!
(Ela é musa, não amante.)

Depois, quando tudo foi pouco a pouco se acalmando naquele delicioso precipício de paixões em que saltei; quando já estava no terraço tomando um suco de laranja, olhando o mar brilhante, a noite veio me dizer, com sua voz adolescente:
— Mahatma, a vida é bela!
Lembro-me de que ontem Roberto Benigni ganhou um Oscar. Hoje, ganhei o meu. Ele, por seu filme. Eu — por meu amor.

Amanhece pela terceira vez consecutiva.
E Jenny Lou acorda como das vezes anteriores: — irretocável. Fico olhando para ela, o sorriso dessa menina me mostra como descrever uma cena de amor com palavras nunca ditas. Me faz dizer "eu te amo" de forma que ainda não houve. E se precisasse de algo mais do que isso, eu seria menos do que ela merece.
Torno a descobrir que o maior afrodisíaco é a tesão.
Diana sai do banho, cabelos molhados, enrolada numa toalha que era de Suzana, encosta seus mil peitinhos nos meus ombros nus e diz que precisam ir embora, as duas. Compromissos, promessas, escola, professoras, mães preocupadas — coisas assim. Como chove, e porque quero, vou com elas. Quando volto, Paritosh está na sala, pensativo, com a sacola colorida de Jenny Lou nas mãos, as roupas que ela havia trazido anteontem. Me pergunta, sem me olhar:
— E as meninas?
— Fui levá-las.
— Mas Jenny Lou “esqueceu” a bolsa aqui? Ato falho...
— Não: um ato de amor, sem falha alguma — digo.
Vejo que ela deixou na mesa da sala um bilhete escrito em azul: “Amei te amar. Assinado: Jenny Lou”.
— Ela te deixou um bilhete — eu lhe aviso.
— Acho que é pra você — me diz. — Não tem nome.
(Talvez seja.)
— Quer tomar alguma coisa? — pergunto.
— Não, mas tenho um pouco de fome — diz Paritosh.
— Que tal um salmão ao molho de laranja, com arroz?
— Seria ótimo.
Convido-o a buscarmos o peixe. Vamos em profundo silêncio. E eu tentando me lembrar de Roberto Freire: “Porque te amo, tu não precisas de mim; porque tu me amas, eu não preciso de ti. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários.”
(Acho que é isso.)


Quando já estávamos na fila da balsa para Santos ele me diz:
— Volte, Mahatma.
— Por quê?
— Volte, pegue o caminho da Cachoeira.
Obedeci com naturalidade.
Na chácara das plantas, no farol, ele me orienta:
— Pare, deixe o carro aqui, longe, e vá sozinho – a pé. Lá na esquina há uma placa: "Peixaria do Povo". Entre, compre meio quilo de sardinhas, mas peça ao balconista, o João, que as pegue uma a uma.
— Sardinhas?!
— Sim.
— Meio quilo é muito pouco, Swami...
— Não discuta, há dois mil anos que eu as multiplico.
(Gosto dessas palavras, tanto, que as havia esquecido.)
Ele permanece no carro, quieto.
Trago o pacotinho de peixe, voltamos passando pela rua onde Silene mora e me lembro do seu pai e da navalha suspensa. “Preciso cortar o cabelo de novo”. Assim que entramos em casa Paritosh pega o Mateus branco que sobrou de ontem e me pede, olhando as sardinhas prateadas:
— Agora, Edson, lave-as com amor, enxugue-as, uma a uma, passe-as em farinha de trigo, e frite-as em óleo de girassol. Bastante óleo e bem quente. Não economize. Lembre-se de Jesus...
Me espanto com os detalhes.
E o mestre continua:
— Volte, Mahatma, volte mais ainda, retorne às origens. Você não nasceu só pra terraço com piscina. Volte à goiabeira lá no fundo do quintal, suba de novo no pé de jaca, na mangueira. Colha ariticuns maduros, veja os maracujás pendurados na cerquinha de taquara. Trepe naquela mesma laranjeira e colha metáforas em vez de laranjas. Brinque de novo com tua irmã que já morreu, pese outra vez meio quilo de sal, varra ciscos no armazém. Abrace teu irmãozinho — que ainda nem bebia. Volte fundo na tua inocência, abrace mais forte teu pai que já se foi. Pegue a mesma pedra que você atirou aquele dia na testa da tua mãe, e atire-a de novo — só que agora erre o alvo, por favor, falhe na pontaria. Derrame aquelas lágrimas que você guardou por todos esses anos e abrace os teus irmãos, um a um, como fossem meus. Chame-os de Thiago, de André, de Ana...

Continua falando comigo, como se soubesse tudo de mim.
(O peixe vai acabar queimando bem no meio das lembranças).

Enya me encanta com sua voz de Janaína irlandesa. Delicado, ele põe a emocionante sacolinha colorida de Jenny Lou no meu colo, se levanta, dá-me um beijo no rosto, e quase some.
— Paritosh? — tento falar alguma coisa.
— Sim?
— Nada...
Enxugo meus olhos com guardanapo de papel e vou à cozinha, multiplicar os peixes — pois também tenho fome.
(Também sou humano.)


Os acontecimentos só são mensuráveis no seu próprio tempo. Nem antes, nem depois. Mas fico me lembrando. Minha mãe faz um doce chamado Freud. Leva maizena, clara de ovos, banana, calda de açúcar negro — e traz alegria e lembranças. Uma delícia. Amo-a, tanto, que às vezes fico bêbado de mãe. De tanto que a tomo nos braços em arco que me embriago dela por mim. E sempre me acordo no interior, mesmo quando viajo para fora. Mas há dias em que me acordo duplamente no interior — como hoje. Estou na casa onde nasci e sinto cheiro de café. Um galo, índio, de cristas excitadas, canta dentro de mim, bem longe, como se cantasse na minha infância. Ouvi tanto esse galo cantar que já lhe sei o co-co-ri de cor...

O acaso vira os dados e Einstein vira um pregador.

Minha mãe me olha em silêncio e sei que antes mesmo de me amar ela ama o infinito absoluto onde eu danço a minha própria vida. Desde que nasci ela me alimenta de leite, amor, vitaminas, feijão, arroz e liberdade. Jamais quebrou as lanças vitoriosas da minha ousadia nem nunca pensou em cortar-me as asas de pássaro livre. Sinto-me abençoado por essa mulher que me apóia com força delicada, me ampara com doçura e me aplaude em todas as conquistas.
E os olhos dela me batizam como se eu fosse preciso.
Por falar nisso.

Batizado no rio Jordão por um louco chamado João, Jesus era um dentre muitos pregadores. Dizia ser impossível servirmos a dois senhores ao mesmo tempo. Olhai as aves do céu: não colhem nem armazenam. Olhai os lírios do campo, que não tecem nem fiam, e o Senhor tudo lhes provê. Eu não vim para trazer a paz, eu vim para trazer a guerra. Eu vim para separar o filho de seu pai e a filha de sua mãe. Rico não entra nunca no céu. Expulsou negociantes do templo. Mais fácil um camelo passar não sei onde, etc. Ficava insultando todo mundo. Um dia o levaram ele ao topo de uma montanha e quase o jogaram no precipício...

Calculo a altura da queda como se fosse um teorema.
E me lembro de Pitágoras, dizendo:
Nem toda madeira serve para se esculpir um Mercúrio.
Quando o discípulo desistia do Liceu e voltava para a cidade, Pitágoras mandava que se lhe abrisse uma cova no fundo do quintal e dizia: “Oremos, que o filho-da-puta voltou a ser normal... E agora está mais morto do que os mortos”.
Nem sei por quê me lembrei desse filósofo. Talvez porque o “Teorema de Pitágoras” não é de sua autoria. Ou talvez porque ele era antes de tudo um aventureiro: arriscou a segura posição de matemático na Grécia, viajou por cerca de trinta anos, e depois voltou como sacerdote egípcio...
(Procure ler a biografia de Pitágoras. Hoje ainda.)



Há pouco eu estava em dúvida sobre um determinado assunto, sem saber ao certo qual atitude deveria tomar. Transmiti tais dúvidas a Joyce Ann e pedi-lhe um comentário a respeito. E ela, numa única frase, simples e grandiosa, deu-me a solução:
— Faça o que um Rei faria!

Fiz.




E não vai dar pra salvar todo mundo.

Quando vejo uma criança brincando ali na praia numa saída de esgoto, pensando ser aquilo um riozinho quente de água doce; quando vejo a branquela estendida na areia, queimando-se mais do que pode nesse sol de meio dia e se arriscando a um câncer de pele; quando vejo o jovem imbecil fazendo sincera declaração de amor à sua noiva, prometendo fazer tudo por ela — pensando seriamente em se casar, constituir família, ficar responsável; quando vejo o gordinho esparramado feito porco na esteira de palha, ressonando após ter comido um prato cheio de gorduras e tomado cinco ou seis latinhas de cerveja; quando vejo o senhor grisalho pensando em negócios à beira do mar e falando ao telefone em vez gozar a vida; quando vejo um casal de burros solidários tomando seu segundo sorvete; quando vejo essas coisas, chego a pensar: — será que eu devo ir lá? — cutucar cada um deles, chamar-lhes à razão, e dizer:
“Ô criança; Ô gordinho; Ô branquela; Ô jovem, Ô senhor, Ô senhora: — Tomem cuidado: vocês estão fazendo besteira... Vocês vão acabar se fodendo!”
Acha que eu deveria me preocupar com esses desgraçados, tentar salvá-los, mostrar-lhes o caminho da verdade, da saúde, da vida, da liberdade, do amor? — Não! Que se fodam, portanto.
E que leiam as mágoas de Florbela Espanca.
Fico me lembrando.

Dizem que havia uma colônia de vermezinhos sonolentos no fundo de um lodaçal. De vez em quando, sem nenhuma razão aparente, alguns subiam à superfície e nunca mais voltavam. Isso deixava perplexos aqueles que permaneciam. O que será que tem lá em cima, que tipo de perigos haveria? – eles se interrogavam, entre um bocejo e outro. Até que certo dia um deles acordou, pôs a mão no coração e prometeu aos seus irmãos: “Vou subir e depois volto para contar a vocês como é o mundo lá em cima.” Preparou-se bem, leu Nietzsche, armou-se de coragem, estudou, meditou, desfez as malas, aguou suas plantinhas, despediu-se dos amores – e subiu. Mas, assim que chegou à superfície, viu Luz, transformou-se numa libélula, entusiasmou-se – criou asas – e voou livre como um louco para o azul do céu...
E agora já não pode mais retornar ao fundo do lodo.
Morreria se voltasse!

Certas promessas jamais serão cumpridas.
Assim como certas metáforas jamais serão compreendidas!

Sinto vontade de te fazer uma pergunta, querida minhoca: Por que você, em vez de continuar cavoucando, não cria asas — e voa?

Confesso: tem segredo que guardo como se meu. Por exemplo: pensei em chamar este livro de “Bíblia Sagrada – volume 2. Edição revista e ampliada”. Sou louco, mas nunca digo que tenho o poder da cura: pois haveria então enorme procissão de desgraçados querendo tocar-me o manto sagrado com as pontas sujas dos seus dedos trêmulos. Uma horrorosa multidão de enfermos desvalidos ao redor de mim, buscando a cura para seus males de amor. Bando de lazarentos rondando ansiosos minhas doces ale-grias.
Não — eu nunca vou dizer que tenho o poder da cura!
Não sou louco!
Em verdade, só posso curar quem já é saudável...
“Cada um por todos, Deus por Si.”
Porque a máscara que cobre a minha dor é sorridente. Assim como Sócrates, eu sigo sempre um raciocínio para onde quer que ele conduza. Mas não é só meu cérebro que cria conceitos.
Sigo também meu coração, para onde quer que ele conduza.

Só tem uma coisa pior do que morrer: — é viver pouco!

Para mim, todo momento é uma oportunidade — de criar, de sonhar, de inventar alguma coisa. De ter uma idéia, dar um abraço ou fazer amor. De escrever uma história ou lembrar de minha mãe.
Para mim toda ocasião é uma chance única de viver a vida.
Toda ocasião é uma festa.
Portanto, este eu que ora sou, num enorme, num desesperado esforço de imaginação, pode até jurar-te amor eterno. Mas, como esperar — como exigir — que o outro eu que amanhã certamente serei cumpra, eternamente, o que promete este eu que ora sou?









xxx
Solidão a Mil.

Nunca precisei de companhia humana para abrir um vinho e jantar à luz de velas. Não preciso de companhia nem de razões para me amar todo dia. Não preciso nem de luz para brilhar. Nem sequer do brilho preciso! Pleno de utopias, meu alforje não tem peso. E mesmo que a barriga ronque — repito — me visto sempre de cetim.
Se sou um ou se sou mais, é meu segundo quem decide.
(Na hora.)

A cada 12 meses eu tiro férias.
— De trinta dias?
— Não: 365!

Não quero me ocupar de mais nada, a não ser da Criação. Ou farei da minha vida uma obra de Arte — ou não farei nada.
Não permito que me cubram a face original; jamais permitirei que me arranquem do peito esse amor puro que sinto pelo Amor Puro. Toda obra de Arte tem que ser prima.
Meu único limite é agora minha própria vontade.
Viver é a mais bela das urgências.
Se você vibra com cada coisa que te acontece, vai acontecer com todas as coisas que te vibram. Você carrega a argila, eu faço a estátua do deus. Traga essa pedra bruta — e descubro com meu cinzel a escultura que se esconde no bloco. Corte com açúcar a lenha que eu escolho, traga-me a nova madeira nobre — que agora é minha vez de fazer o entalhe. Recolha as achas que se perdem no teu peito, amontoe com amor os teus gravetos, que eu acendo com certeza a poesia do teu fogo. Cada um faz o que pode.
(E o que sabe.)
Toda página tem que ser primeira, cada uma tem que ser a principal. Nada em mim é secundário, nada é dispensável.
— Exceto eu.
Mas, tudo significa — e significa intensamente.
Cada palavra que digo tem um peso, medida, tamanho, uma forma de se pôr, um jeito próprio de se dar. Não escrevo para impres-sionar: as emoções que se produzem a partir do meu verso não são derivações. Se brilho em teus olhos, não é porque busque lisonjas refletidas e vãs. Se ao ler o que crio crescem fogueiras no teu peito antes frio, saiba que a madeira que arde nunca é minha.
— Sou apenas a fagulha que incendeia.
Sou todo faísca, jamais entro em combustão, não quero me extinguir. Sou centelha com luz própria, e me desperdiço se em teu peito houver apenas pó de serra.
Minhas asas se partiriam se eu tentasse penetrar paredes de cimento, e se perderia minha força em baldes de gelo. Se acendem algo em você minhas palavras, só pode ser uma coisa: — O amor. Por isso, não há como contar um sonho alheio. Cada um só pode contar o seu. Nem mesmo sonhar o sonho do outro podemos.
Cada um tem que sonhar seu próprio sonho.
Esta é a realidade:
Não quero nem saber se tem luz no fim do túnel:
— Quando entro nele já acendo a minha!
Não posso depender de luz alheia.

Mas você, você faz de conta que atravessa falsas portas, e depois simula percorrer um caminho inexistente. Você pensa que está indo para algum lugar, mas em verdade vai a lugar algum. Patina no próprio cansaço, e ainda exige que eu creia que se move. Além do mais, quer levar-me a força por aí? Por aí você só pode me levar à forca! À força não irei nem mesmo ao cadafalso. Levar-me a força só se for à força... Só que não sou fraco!
Tem pessoas que nos enrolam com cedilhas e crases e então nos levam a força sem violência. Sutilmente — o que é um perigo.
Fico pensando, envolto em mistérios e graves acentos.
Há várias trilhas para se chegar ao Pico. Mas, só descobri-las não adianta: é preciso subir. Escolha uma delas — e suba. Não basta descobrir o caminho: é preciso percorrê-lo com força de vontade.
Para ser feliz é preciso mais: temos que saber percorrê-lo.

Há uma única urgência: — viver agora.
Uma só prioridade: — ser feliz.
E meu único compromisso é com a própria Natureza.
Por isso, foda-se quem for contra minha alegria.

Quando olho pra vocês, tão atarefados, tão apressados, sérios e compenetrados; quando vejo vocês carregando tijolos para construir sua escada, e ao mesmo tempo subindo por ela, suados, arfando — eu me espanto com tamanha burrice. Porque, desse jeito, no fim da vida, quando vocês estiverem pisando o último degrau, cansados, vão ver que essa porra de escada imóvel acaba dando numa enorme parede fria, que tem duas características: é de cimento – e é errada!
Vocês percebem o que eu quero dizer?
Se não entendem desse assunto escadaria, é melhor que parem: arquitetura de tragédia não é coisa para amadores.
Vejo vocês arrastando as circunstâncias como carregassem um saco de lixo nas costas — pesado e fedido. Vocês, arcados, patinam. Suam em bicas. E o saco de circunstâncias cresce na pro-porcão do desespero. Mas não lhes basta que a própria vida seja um grande beco sem saída: vocês precisam de dois becos enormes sem saída — só para terem a ilusão de que decidem qual caminho vão tomar...
— Idiotas!
Então eu rompo com uma mínima norma injusta, desrespeito uma pequenina lei moral, e vocês já querem me punir. Mas vocês — hipócritas! — vocês rompem com a própria Razão, desrespeitam a Lógica da Vida! E nem se dão conta da barbaridade que cometem.
Vocês violam as Leis da Natureza, e acham isso normal.
(Que incoerência...)
E o que é pior: não posso mais ajudar nenhum de vocês:
— Faltam-me as esporas!


A vida está por um fio. Tua casa tá pegando fogo, teu amor se despedaça, tua hora está chegando... Não a hora da morte biológica, que pode até demorar, mas a hora da verdade, a hora de virar gente, a hora de assumir o comando. A hora de tomar consciência. A cebola da vida está descascando, inexorável, aí, ao teu lado; o leão do tempo, feroz, rugindo no teu cangote — e você não reage. Nem se mexe. Acontece que há conclusões às quais você tem obrigação de chegar, hoje: Ou você se salva — ou você vai se ferrar...

É isso que eu quero dizer novamente hoje, mas você teima em não me ouvir. Porque todos temos uma certa tendência neurótica em deixar as coisas como estão, em salvar as aparências, em manter as estruturas — mesmo que apodreçam. Quase todos temos uma enorme preguiça de agitar as circunstâncias. Propendemos a deixar tudo como está, embora vivamos fazendo promessas de mudar o mundo. Como disse Göethe no Fausto, "a quem persiste na Esperança ainda resta a Salvação". Mas você sempre deixa pra depois. Você chuta o agora. Você adia o instante. Você posterga o hoje. Você pensa que vai viver mil anos...
Mas não vai, não.


Freud dizia que ao renunciarmos à satisfação de algum prazer sentimos raiva de nós mesmos. E essa raiva nos dá vontade de punir todos aqueles que a tal prazer não renunciaram.
Portanto, resgatem seus prazeres.
Sua vontade de punir-me é totalmente inócua.
De nada adianta liberar os instintos sem lhes dar um sentido. Então, escrevo. Mas, assim como Teseu, antes de uma grande jorna-da, literária ou sexual, tanto faz — procuro tornar os deuses, meus pares, favoráveis ao que pretendo. Antes de qualquer aventura me abençoam. Não quero que me digam para onde devo ir, porque toda aventura tem que ser original.
Só peço é que não me tranquem os caminhos que escolho.
E me jogo de cabeça no meio Deles.
Não sou louco, entretanto, pra dizer que tipo de Deus sou eu: isso não se diz .
Guardo esse segredo como se fosse meu, a setenta chaves.
Porque hoje — hoje só me chamo Napoleão.

Afinal, sou o melhor fruto das minhas próprias inquietações.

Tesão é uma forma de alegria!
O coração das minhas coisas é feito literatura.
Ao ler uma história minha de amor é meu coração que se masturba — e goza como um Bourdelle acabando seu Hércules. Quando leio em minha língua, subvocalizo a semântica do prazer. A solitária sintaxe do prazer estético que pode ser uma leitura.
Minha capacidade de amar é maior que a minha poesia.
E vice-versa.
(Bourdelle diz mais ou menos isto: “A arte destaca as grandes linhas da natureza. O segredo da arte é o amor.”)
— Escrevo. E o que de certo modo lamento é que nenhum de meus irmãos manifesta um genuíno interesse por aquilo que escrevo. Debulho com amor a espiga dourada da vida — e consigo pérolas. Mas eles não as percebem. (Fosse milho talvez percebessem.) Então, vem uma pessoa que nunca vi, simpática, põe os braços nos meus ombros, caminha um pouco ao meu lado, e diz, sorrindo:
— Te amo! O poema Mude mudou minha vida.
Depois, telefonema de um desconhecido: “Você me assusta com aquilo que escreve. Mexe com a gente. Você é corajoso.”
E vem hoje essa menina, por e-mail, me contar:
“Teu livro é minha Bíblia. Meu criado-mudo agora tem voz: nunca durmo sem te ler...”
Eu amo essas pessoas pelo incentivo, pela razão, pelo amor que me dão. Pelas emoções que me trazem. E meus irmãos? Esses, com três ou quatro deliciosas exceções, sequer dizem que leram meus livros. Não me olham nos olhos, com amor, como se falassem:
“Continue, Edson. Persevere: você ainda será best seller”.
— Nada.
O silêncio deles me machuca. Que ao menos pudessem dizer: “Tá uma merda!” — mas nem isso fazem. Como se eu não tivesse escrito nada. Acho que me aplaudiriam se eu arranjasse uma tonta, casasse com a desgraçada na igreja, amasse-a com desânimo dia sim dia não, e dormisse roncando em frente à tv. Com certeza eles me aplaudiriam ainda mais se em cinco anos eu fizesse saltar da barriga da burra uns três ou quatro fedelhos malcriados e ranhentos.
Mas não consigo produzir essas coisas...
Eu só sei criar histórias, juntar palavras, fazer poesias. O meu mundo é feito só de palavras, de sonhos, de amor.

Se você não me compreende, desista de mim.

Antes, contudo, preciso ressaltar uma coisa profunda, espécie de confissão indispensável: Paritosh é para mim o que Louis Lambert foi para Balzac. Porém, enquanto Lambert era uma espécie dançante de Shiva bem comportado, Paritosh é um Baco eternamente apaixonado, meio bêbado, alegre — e nu.
Adiante as benditas diferenças serão ditas.
— Se você ainda não entendeu, é melhor estudar.
Honoré de Balzac também passou fome. Assim como Henry Miller, Van Gogh, Picasso, Rimbaud, Joyce, Knut Hamson, etc.
Logo mais estarei entre eles.
Fico só escrevendo — quando não estou pintando o sete.
(Por isso é que logo estarei entre eles...)
Mas até mesmo o romeno E. M. Cioran sugere o ócio criativo. Eis o que ele diz no seu livro “Breviário de Decomposição”, que foi reescrito quatro vezes em mais de dez anos:
“Os desocupados captam mais coisas e são mais profundos que os atarefados, pois nenhuma tarefa limita seus horizontes.”
Gosto muito de Cioran.

Mas meu irmão Zezé, onde será que ele está?
É um dos mais sensíveis, o mais humano e o mais porralouca também. Irresponsável quase às raias da loucura, mas apaixonou-se demais por uma aventureira e quis com ela constituir família, juntar os trapos quando nem isso era dele. Não soube ler os sinais e caiu direto no fundo do poço, como se precisasse mesmo chegar a tanto. Tem agora uns três ou quatro filhos, com quatro ou cinco mulheres diferentes. Trabalha de sol a sol, madruga virando noite, não estudou, se vira como pode e como deixam. Mora perto de flores mas não no meio delas — talvez para não pisá-las, talvez para não cheirá-las. Não sei. Mas tenho saudades do filho-da-mãe...
(Será que não está precisando de ajuda?)
Dizem que reagiu a tempo, encontrou Daniele, e abandonou o maldoso construtor de precipícios que se chama álcool. Por falar em chama, lembro-me agora estranhamente dos “Fogos” de Marguerite Yourcenar, quando ela me disse mais ou menos o seguinte:
O álcool nos torna lúcidos, meu amor: depois de duas ou três taças de vinho branco já nem me lembro de você.












Xxx colocar este como segundo capítulo
O ciúme é a lepra do Amor.

Aquela época eu dizia à futura Leprosa:
— Para não ser preciso que se coloque uma recusa entre nós dois, não me peça coisas impossíveis, absurdas. Mas depois de um certo tempo você passou a pedir-me a minha própria liberdade, que era tudo o que eu mais tinha.
Como poderia então desfazer-me dela, assim — sem mais?
Peça-me um sorriso, uma taça de vinho, um orgasmo; peça-me uma rosa vermelha, uma massagem, uma poesia de amor, um prato de macarrão, uma noite escandalosa de luar — peça-me coisas que posso dar sem que me ampute.
Não tente me levar para onde eu não queira, nem me convide para ser triste. Saiba o que posso dar, o que posso partilhar, onde estão nossos limites, o que sou e o que quero. E, principalmente, saiba que não quero nada de você. Quero apenas que você seja feliz — quero multiplicar tua alegria, meu amor.

Não queira se apossar do que me é indispensável.

Eu dizia — mas a ciumenta não me ouvia. E numa situação opressora, quem primeiro em mim se rebela é o sexo. Meu cacete é um subversivo: ao sentir-se preso — amolece. Faz greve de fome, se encolhe, quase desaparece. Para pegar nele precisamos de uma pinça. Mas se a ciumenta visse como ele se comporta em liberdade, ficaria babando de ódio! Quando livre, ele deixa plena de sangue sua cabeça gloriosa, levanta uma bandeira enfeitiçada — e conquista territórios de prazer absoluto. Incansável, decidido, brilhante!
A presença dela preenchia sempre de intervalos minha vida. Uma horrorosa sucessão cotidiana de vácuos escuros, frios: era isso nossa vida em comum. Mas eu queria era uma vida incomum.
Então fui à luta — e consegui.
Porém, de nada adianta ir à luta sem antes aprender a lutar. Definir o adversário, também é fundamental. Às vezes, o principal inimigo mora dentro do nosso próprio peito. O inimigo de fora é fácil de se vencer, mas o dentro, esse não se deixa apanhar facilmente. É muito manhoso. A primeira coisa que faz, o tinhoso, é simular ser amigo, é dizer que nos defende dos perigos do mundo. Ele nos corrói por dentro — mas diz que nos ama. Nos afasta da felicidade, nos segura, nos prende, nos sufoca. E ficamos com a estranha e desgraçada sensação de que a vida escoa-se pelo ralo. Naquele tempo, a rotina era um monstro espreitando nós dois: aonde nós dois íamos, ele ia atrás — viscoso, gosmento. Um horror. Chamávamos de casamento àquela nossa relação: viscosa, gosmenta.

O casamento tem duas fases: A primeira é um horror.
E a segunda — uma continuação da primeira...

Eu havia me apaixonado por ela, “a maior paixão da minha vida”. Maria era “tudo” para mim: abandonei os outros amores, me afastei dos amigos, parei de escrever, diminuí o vinho, deixei a ginástica, comecei a ficar responsável, engordei, me afastei até da família.
Tudo por aquele amor — que já não há!
Por algum tempo ainda houve sexo entre nós dois.
Hoje — nem isso.
Há quase três meses que não fazemos amor, com apenas uma exceção gostosa, e outra que foi um desastre. Até Paritosh escafedeu-se! Então me pergunto: “o que é que estou fazendo aqui?”
Aqui, neste depósito de corações amolecidos, neste cemitério das nossas paixões — aqui, Paritosh diz que jamais voltará!
Sou então obrigado a concluir:
Quando estou casado tenho menos amores, menos amigos, menos prazer, menos tempo, menos liberdade — e me sinto mal: fico pior. Quando estou solteiro tenho mais amores, mais amigos, mais prazer, mais tempo, mais liberdade — e me sinto bem: fico melhor.
Então — casar pra quê?
“O casamento é o túmulo do amor”: esta é a frase inicial do meu livro Nasci Para Viver. O casamento é um horror. Lembre-se: se Jesus tivesse se casado a humanidade teria desperdiçado um Deus. Enorme e cabal demonstração de falta de criatividade, o casamento é o cemitério das paixões. Um castigo, uma lepra descascando sobre o corpo dos maiores desgraçados. Em suma, depois que se casam, os amantes acabam assassinando o (suposto) amor que havia antes. Ao tentarem enquadrar o amor nos limites de um casamento tradicional, as pessoas cometem o maior disparate.

Regulamentar a paixão é sufocá-la em si mesma.
Formalizar a loucura é uma grande besteira!

Repito: o casamento é antinatural. Forçando a natureza dessa forma estúpida, os casais candidatam-se ao desespero, sofrem muito, frustram-se mutuamente. Matam-se...
Para fugir de uma prisão, você tem antes que sentir-se dentro dela. Se você não acredita que está preso, como então achar a porta de saída? Para sair dessa armadilha, você tem que estar convicto de que ela existe.
Teu casamento, você sabe, não é uma ilusão...
Mas o nosso casamento, aquele, era do tipo sem papel, em que simulávamos a liberdade que de fato não havia. De tão baixa a minha estima, de tão rasteiros os meus anseios, que, mesmo quando abria os olhos, só via o chão. O maior problema numa relação assim não é o papel que se assina — é o papel que se representa.
(Era assim nossa vida "comum".)
— E vocês tiveram lua de mel? — me perguntam.
— Absolutamente, não! Não éramos tão medíocres assim...
Fico filosofando.

A lua de mel é um sintoma.
A primeira grande contradição do casamento é a lua de mel. Para viver momentos de privacidade criativa, de emoção verdadeira — enfim: momentos de aventura — o casal foge, só por alguns dias, do lugar onde provavelmente irá viver o resto da sua vida!
A lua de mel é um sinal. E se vier depois de um longo período de noivado (meu deus do céu!) será então a mais inequívoca demonstração de que a mediocridade do casal não tem limite...
Noivado é coisa de caipira!
A jacuzada adora noivar...

Naquele tempo, a maior sensação de liberdade que eu tinha era quando olhava de manhã pela janela do nosso apartamento — e via o sol nascer quadrado. Cada dia que amanhecia ao lado dela, eu me desesperava por ter perdido mais uma noite — que poderia ter sido consagrada ao sono tranqüilo. E toda noite, quando me preparava para dormir ao seu lado, também me desesperava: mais um dia que acabava desperdiçando — e que devia tê-lo aproveitado para viver a solidão, ou o prazer, ou até mesmo uma dor menos estúpida.
Mas eu simplesmente sofria.
Sofrer era um verbo que eu conjugava em todos os tempos, com atos de herói cansado, gestos embaçados pela presença cotidiana da morte em minha vida. Sofrimento era o nome do navio de pedra onde coloquei minhas coisas. Joguei a existência no velho barco que navegava em águas turvas. Marujos bêbados amotinados decidiam aos gritos se me atiravam ao mar — ou se me levavam ao único porto possível: um lugar chamado Morte.
E então sofria, e sofria mais ainda, esperando em vão que as circunstâncias reagissem em meu nome. Naquele tempo eu desperdi-çava vinte e quatro horas de vida por dia!
Toda noite eu me trancava no banheiro e dizia ao espelho:
— Você é fera cansada, caída, algema de ouro no dedo anular, férreo círculo que te prende. Vive num circo onde o palhaço é fera domada. Eu sou rio de águas correntes, liberto. E você, rio de águas paradas, presas. Não fale em suicídio, pois rirei:
"Será que o idiota pensa que é possível morrer mais?"
O suicídio não é recomendável. Camus dizia que o suicídio é a única questão filosófica profunda, etc. Besteira dele. O suicídio é um luxo a que um infeliz casado não se pode dar.
Trocar uma espécie de morte por outra é burrice!.
— Você só morre quando perde a consciência do Agora.
Mas a rotina é mortal. Deuses não podem ser cotidianos: se acaba o mistério morre o encanto.
Quando passam a domir juntos na mesma cama, aqueles que se amam assinam a sentença de morte da sua paixão.
— É fatal!
Doçuras repetidas se desgastam de forma irreversível.
Excesso de presença faz buracos enormes na paixão — e o Amor não resiste. Ainda que seja preciosa uma pedra, se a polirmos demais ela perde seu brilho. Às vezes, uma simples correntinha de ouro não passa de nó na garganta. Outras vezes, nos enforcamos até mesmo com um maravilhoso colar de pérolas. Impossível continuar amando alguém que se vê todo dia — a menos que se possa chamar de "amor" essa coisa sem nome que sinto ao te ver.
Dê-me agora um pouco de espaço, deixe-me respirar.
Permita-me sentir saudades de você.
Desapareça, carinhosamente, por uns tempos.
— Só assim eu sei te amar.
Sinto muito.
O tempo passa.

Mas todos os prazeres que tenho vivido nos últimos anos se devem ao meu irrestrito Amor pela Liberdade. Se devem à minha vontade de ser livre, e à extrema capacidade que tenho de satisfazê-la. Contudo, se não tivesse reagido a tempo, com vigorosa determinação, hoje eu provavelmente estaria casado com aquela estúpida que me queria como posse. Ou estaria morto — o que é quase a mesma coisa. Queria, a infeliz, pôr grades no meu crepúsculo, e abri-las só quando ele fosse berrante, se a cor fosse de abóbora, e se tivesse plumagem. Caso contrário, a chave continuaria no peito dela, pendurada numa correntinha de ouro falso.
E eu que me contentasse com o buraco da fechadura...
— Não concordei!

Nasci para compartilhar amor — não ódio!

Como amo Kafka, havia reescrito, recriando, A Metamorfose, com linguagem poética, e dei-lhe o título de "Metaformose". Só que, em vez de barata, a personagem — Rose — se transforma em flor. E a Leprosa, que nunca leu um livro na vida (ela só lia duas coisas: bula de remédio para emagrecer e embalagem de xampú), com muito custo conseguiu chegar na página dois desse meu. Mas reagiu, fechando o romance e abrindo a geladeira em busca de comida:
— Que besteira, Edson: — flores não falam...
(Me lembra Cartola, do "perfume que elas exalam".)
Tive vontade de dar um soco semântico na desgraçada.
Mas não sabia onde encontrar o estômago de uma coisa que a Leprosa nunca teve — e que atende pelo nome de Sensibilidade. No início do relacionamento, a infeliz aparentava ter um certo brilho — mas era falso, e ainda por cima foi descascando. A leprosa tinha uma capacidade impressionante de falar besteiras, sobre qualquer assunto. E, você sabe, certas pessoas não têm aquele impulso intelectual de examinar a validade lógica das proposições que enunciam. Falam como se cuspissem as palavras. Concluem sem fundamentos que lhes amparem o que pensam que pensam. Só cometem besteiras esses imbecis que não sabem discernir racionalmente a verdade — e confundem-na com suas próprias opiniões.
Ah, você ainda está querendo saber o nome da leprosa?
(Depois, se puder vomitá-lo, vou te contar.)

Eis uma verdade estatisticamente impressionante:
Todo babaca tem atração irresistível por mulheres ansiosas.
— E vice-versa.

A liberdade ilusória é pior do que a liberdade suprimida.
Houve dias em que pensei que seria melhor estar preso numa cela de verdade, com ferrolho e carcereiro, do que viver naquela casa, ao lado da Leprosa. Minha namorada é (era? Foi? Ainda é, será?) pior que um carcereiro de verdade. Pois aqui em minha casa tenho às vezes a ilusão de que sou livre. A Leprosa dava-me total liberdade de escolher o tipo de cárcere onde eu poderia passar meus últimos dias.
(Misturo o tempo dos verbos como se tudo não fosse agora.)

Mas ninguém mata a liberdade de ninguém.
Cada um, a seu modo, assassina a sua própria. "Ah, mas meu marido...; ah, mas minha namorada...; ah, mas meu pai...; ah, mas meu irmão...; ah, mas a minha dona...; ah, mas o meu patrão...; ah, mas a lei..." — Bull shit! Ninguém consegue, sem tua ajuda, matar tua própria liberdade. A liberdade é uma coisa muito profunda para se deixar abater, assim, bobamente.
Quase sempre somos cúmplices dos nossos carrascos.
Os papéis são complementares.
(Você tem é que ser afim de um serafim.)
Porque.

O melhor afrodisíaco é a tesão.

Meus dias são diferentes um do outro, e nunca se repetem. Ontem eu dormi à luz de velas. Um pouco antes havia tentado comer o bife à cavalo no escuro, mas galopava demais. Então, a-cendi uma vela, daquelas bonitas, com fusos, esclarecida, imaculada. Jantei o máximo mínimo possível. Mais tarde, metade da vela queimando, fui pra cama, um copo de leite como se me levasse pela mão. Chovia lá fora, e eu, solteiro, fiquei lendo sob a luz do castiçal. Deve ser a centésima vez que tento ler Finnegans Wake no original, e não consigo. (Confesso: sempre retorno à página um, não passo dela). Um vento delicante entra pela janela — hoje não é o baudelaire. Me lembro do vaso de flores que ficou lá fora: “acho que vou comprar um regador” porque, como diz Paritosh, “esguicho é coisa de pobre”.
Fico pensando.
Oscar Wilde dizia que solteiros ricos deveriam pagar multas pesadíssimas porque “não é justo que alguns homens sejam tão mais felizes do que os outros...”
Fecho o James com todo o respeito, e passo a ouvir o vento. Agora Vento com maiúscula, de Homero e de Virgílio, a Memória ejacula pedaços da Odisséia em minha boca, fragmentos de Eneida nos meus olhos. Os Ventos, que moram nas profundas cavernas das ilhas Eólias, dia e noite rugem por trás das grades, contidos pelo Rei Éolo. Para que não escapem, Júpiter toma seus cuidados, coloca montanhas e rochedos sobre as cavernas, e faz com que Éolo reine a partir de cima. (Se estiver errado você me corrige depois). Tomo outro gole de leite, a chama da vela só não bruxuleia porque jamais usarei termo tão vulgar. Quando leio um texto onde o autor diz "bruxuleante", penso logo que se trata de um incompetente literário. Pois bem, a chama da vela "não bruxuleava", ela lançava-me trêmulas cintilações — como se fosse uma Suzana adormecendo só.

Continuei a pensar.

Na Odisséia, barris de ventos são mandados a Ulisses — quando abertos desencadearam tempestade, e os navios soçobraram. (O que será que é mais bonito: soçobrar ou naufragar?) Acho que é na Eneida que Éolo abre o flanco da montanha com golpes de espada, os Ventos escapam e agitam o mar do Guarujá. (Ou teria sido golpe de lança?). Claro que mais tarde Netuno os devolve às montanhas. Em Atenas, havia os Ventos bons e os maldosos. Acho que eram oito — mas só lembro de Euro, Áfrico, Setentrião, Zéfiro e Aquilão. (Faltam três). Dou à minha memória mais um gole de leite, mas não adianta: ela não me conta quais são os outros.
Os Ventos são gênios inquietos, turbulentos e volúveis — como alguém que eu conheço, vocês sabem. Ah, havia também o vento Bóreas, que se apaixonou pela filha do rei de Atenas (terá sido Otília? Ou Olinta?), mas como o pai zeloso não permitiu que se amassem, Bóreas raptou-a num turbilhão. Transformado em cavalo branco para levar a princesa, era capaz de correr tão veloz sobre os campos de trigo, "que as espigas nem se curvavam".
(Que lindo!)
E me lembro da Tempestade, essa ninfa do ar.
Não sei nada sobre ela. Só sei que faz vários ventos soprarem juntos, espalha granizos, destrói plantações, derruba casas, afunda barcos, e quase nos mata de medo quando estamos a onze mil pés de altura, lendo à noite num Airbus, no meio do Atlântico.
A Tempestade deve ser uma louca.
Uma vez, navegando em Porto Seguro, eu a desafiei em alto mar. Quanto mais vento a louca jogava sobre mim, mais eu gritava. "Leve-me, sua puta, mas deixe o barco".
— Deixe o barco, deixe os outros, porque a coisa é só entre nós dois. Leve-me, desgraçada, arraste-me, se puder!
Eu tinha certeza de que, se acaso caísse no mar, Netuno, meu querido, me salvaria. Porque, quando nos transformamos num Deles, um Outro sempre acaba Nos salvando.

Bem, nesta madrugada, escura e brilhante ao mesmo tempo, um dos Ventos me toca, entrando pela janela, e o castiçal me olha de olhos fechados, mudo sobre o criado. Ao seu lado, meio copo de leite como se meia flor. A vela se foi enquanto eu dormia, mas deixou vários pingos que se derretem por mim. Começo a sorrir.
(Num dia assim — numa madrugada assim — poderia eu fazer outra coisa, além de sorrir?)
Fico pensando ainda mais.
Um novo passarinho começa a cantar lá fora, o barulho do mar atinge meus tímpanos, como se não fosse tanto.
Lúcifer acaba de passar, sua mãe está chegando.
— Vou fazer um café.
(Confesso: digito essas coisas madrugadas com o sol levante já me olhando forte. Bem que se poderia inventar um editor de textos ligado ao cérebro da gente. Em vez de ficar digitando o que pensei, eu só imprimiria, para mostrar então aos meus amores tudo aquilo que senti. E que estou sentindo.)

Mas, você quer que eu fale da Leprosa, outra vez. Já não basta o que escrevi sobre ela? Quer que eu fale mais? Eu não disse que você é mórbido? Gosta quando falo de misérias, vibra com tra-gédias alheias. Não — agora não vou te dar esse gostinho. Falar dessa infeliz tem gosto amargo, para mim. É como chupar um sorvete mole. Você já chupou sorvete mole? Nem queira — deve ser amargo. A doçura de um sorvete é diretamente proporcional à sua própria dureza. Creia-me — ou experimente. (Sorvete ou qualquer coisa semelhante...)
Em vez de uma ciumenta vou falar de uma deusa.
A deusa que sempre me deixou de pau duro, mesmo quando ia embora, de madrugada, depois de uma noite quase inteira de amor. De novo vou falar de Suzana, como se falasse de Joyce. E quando falo dela, incorporo uma espécie única de divindade sem nome: sei lá que tipo de encanto pode ser esse. Só sei que é bom.
Quando falo dessa menina eu me transformo em tudo o que gostaria de ter sido — e realmente fui. Fico com o diabo no corpo, no corpo inteiro. Nunca estive tão criativo — não pelo que escrevo, mas pelo que sinto. Tento escrever o que estou sentindo, tento, mas o que sinto é muito mais.
O que sinto é muito, muito maior — não cabe em palavras.
Quase nem cabe em mim.
Então me transbordo, só pra ver se aproveito essas coisas que sinto, e que explodem. Tenho que inflar meu corpo para que nele caiba minha alma inteira — não há outro meio de me conter.
Nem quero mesmo que haja.
Sauvage, vou à geladeira, pego uma fatia deliciosa de presunto cru e volto mastigando-a como se comesse um deus. Olho para o mar azul desta ardente tarde fevereira, sinto o novo vento baudelaire me refrescando, febril, entusiasmante, guarujássico.
Não pode nunca haver palavras que me digam todo.
Porque o que sinto sou eu — nada mais.
(E se você não entende, já devia ter parado!)
Nenhuma coisa daqui é falsa, nenhuma história inventei.
Todas as luas que digo ter visto — as vi de verdade. Algumas, Dianas; outras, nem sei — mas todas amei, esclarecidas com luz. Orgasmos que afirmo ter sentido, reais, me deram vida, me fizeram melhor, muito melhor. Mas aqueles que só me contaram não posso garanti-los — ainda que sentidos pelas deusas que uma vez conheci. Todos os amores foram chamados por seus próprios nomes, nada tenho a esconder. Só mesmo a jararaca é que chamei de “leprosa”, porque essa infeliz não amei — ela eu sofri.
Foram ditas as palavras que eu digo que disse. Benditas, ainda que às vezes completamente mal ditas. Não preciso que você creia em mim. Não escrevo para ser crido, como já disse. Sou um escritor de sucesso, repito — só fama é que não tenho ainda — e nem busco.
Escrevo porque gosto, só por isso.
— Nada mais.
E digo que tem duas coisas que não sinto há séculos:
— Ódio e ciúme.
Coisas vergonhosas de serem sentidas. Mas, infelizmente, só depois de crescermos é que chegamos a tão belas conclusões.
Ódio é coisa primária; e ciúme é a lepra do Amor.
Tem também uma terceira, igualmente horrorosa:
— Pressa.
(Essa é mortal!)
Dizem que quando corremos muito, quando nos apressamos, nossa alma fica lá atrás. Então precisamos fazer uma pausa para que ela nos alcance de novo. A pressa é portanto causa do desâ-nimo.
Na vida errei muitas vezes, e acertei quase outro tanto.
Cheguei a matar inocentes amores, em nome de algo melhor — em nome do próprio Amor. Matei amores para não matar a vida. Porém sou criminoso sensível, que ama Nietzsche nas vagas horas, e que não respeita o falso fascínora que tem a coragem da navalha, mas não a do sangue. Sangue pulsante, não derramado. Porque a primeira coisa que morre quando a liberdade se vai é o amor. Mas conclusões inteligentes estão além da compreensão de um ciumento! Esperar que o pobre diabo raciocine é pedir demais.

Não espere a graça do cisne no pescoço de um pato!

A maior tragédia chama-se fraqueza de alma.
Só pode ser feliz quem é livre, em todos os sentidos.
Quem não ama a liberdade não consegue amar a vida.
E inversamente.
Eu — eu só me ligo ao que não me prende.
(Se você continua não entendendo, já devia ter parado!)
Chega a noite aqui, agora, e sinto mais uma vez que o melhor afrodisíaco é a tesão. Tomo suco de laranja como se fosse de mim, ponho a repetir Destination Anywhere, e vejo lá fora o chão prateado. Exprimo as minhas idéias de amor. Saio, tiro a roupa toda, me mostro nu à Diana, escandalosa lá no céu, sem vergonha, sem medo, sem pressa. Há uma estrela enorme perto, como Daniele. Danço abraçado ao corpo como se fosse a ela. A música de novo começa, mistura de tambores e loucuras, madrugada que me encanta.
"A dança que cura é a dança por dentro."
"Tum tum, tum tum tum, tum tum tum, tum tum tum."
Grilos cricrilam, graves. Parecem a Susan Sontag. Um cheiro de Sheerazade na infância de Rose. O pai morto no caixão da sala, e a coitadinha borrifando perfume barato no cheiro que vinha dele. Lembro de meus heróis, dos seis: quatro mortos, dois vivos. Danço para mim o que disse cada um. "Toda ciência seria supérflua, se a aparência e a essência das coisas se confundissem". Fecho os olhos, aperto as pálpebras, fosfenos me inundam. "Energia é igual a mc2". "Deus não joga dados ao acaso". Nessas horas, falar de Deus na terceira pessoa é um desperdício. Logo a primeira que me vem à cabeça: "Quem não for capaz de matar seu pai e sua mãe não pode ser meu discípulo". (Quatro são judeus). "Hay que enrijecerse para la lucha, pero sin perder la ternura". Bon Jovi continua, e eu — encantado — dançando nu. "Sonho é realização disfarçada de um desejo inconsciente". E um dos meus heróis vivos, por quem estou apaixonado, me diz, sorrindo: "Cada um é responsável por seu próprio orgasmo".
Então, saltando da alma e saindo pela boca uma frase minha para que dance com ela: "Amar é reconhecer, afetuosamente, o direito que o outro tem de fazer suas escolhas".
Fico pensando: "Essa mulher é quase perfeita".
— Você tem corpo de homem, mas tua alma é feminina — ela me diz, como se soubesse de tudo. E continua:
— Ninguém me conheceu tanto, tão profundamente.
Jantávamos, ela sugeriu Calamares para acompanhar o peixe: "saudades portuguesas de uma festa a que ela foi" — me explicou. Qualquer homem morreria de amores por ela, e pelos vinhos que escolhe. Qualquer um morreria de amores pela vida que ela dá à vida que a gente tem. “Saudades de uma festa que ela é...”
— Você adivinha os meus anseios — me confessa.
Concordo.
(E sinto ainda hoje saudades da festa que ela foi.)
No seu corpo, mora a alma de todas as outras.
Deitada sorridente em minha cama, parece o Pico do Everest que suspira horizontal. Para escalar seu topo tenho que deitar-me ao lado dela, delicadamente. Nem é preciso que se dispa, pois sempre a vejo com meus olhos nus. Ela tem 1.780 milímetros de altura, e hoje vou beijá-los todos, bem devagarzinho.
— Um por um.
Menina, é Paritosh quem sempre te olha por cima dos meus ombros. Quando você ler o que escrevo, (...), verá que essas coisas que te conto agora nunca foram ditas pra ninguém. De tão puras, são infinitas as coisas novas que faço ao teu lado. Sou sempre original quando me encanto. Epifanias de um esplendor. Nesta hora mágica um galo sinuoso canta na crista da minha onda.
Aquilo que planejamos não nos surpreende.
O que é planejado nunca emociona, não tem encanto.
Toda aventura tem que ser imprevisível.
Se você não cair de vez no mundo, o mundo é acaba caindo, desabando sobre você — e te esmaga sem dó.
Este plano por onde escorrego da normalidade à loucura não tem fim — tem só delícias inclinadas. O verdadeiro desapego é aquele que temos pelas coisas internas e pelas externas. O desapego primeiro acontece por dentro da gente — vamos deixando de precisar daquilo que já estava no interior de nós mesmos. Porque desapegar-se só das coisas que estão fora é muito fácil.
Antigamente eu precisava de um enorme galpão para guardar tudo aquilo que imaginava necessitar. Depois, as coisas que supunha muito importantes para mim cabiam numa sala pequena. Mais tarde, essas coisas "extremamente importantes" passaram a caber num armário de tamanho médio no quarto do fundo. Bem depois, coloquei tudo aquilo que ainda considerava “muito importante” no porta-malas de um carro conversível preto — e saí pelo mundo. Andei, rodei, tomei sol, tomei chuva, tomei ar, vento, brisas, amei com a liberdade absoluta — e fui me despojando ainda mais.
Agora, cheio de amor e pleno de vida, vejo que todas as coisas verdadeiramente importantes para mim, hoje, cabem dentro de uma calça jeans e de uma camiseta branca de algodão.
— Não preciso nem de sapatos!
Agora sou livre de verdade, porque agora só preciso de mim.
(Por enquanto.)
Mas, como Diógenes, logo logo vou até andar pelado.
O esplendor sempre me acompanha em meus devaneios nus.

Ficamos conversando na sala, soltos, dois pássaros surpresos com tamanha gostosura. Janaína, "clair de lune" sobre nós, cortina de luar atormentada por violar a tua sombra. Chazinho com fatias de laranja, vinho rubro, água cristalina, variações de Paganini nos deixando bêbados de amor por essa musa. Nalgum lugar do presente, o passado se mostra ao futuro. Apago as luzes para que ela interrompa a visão do Botticelli, e mergulhe no escuro de Beethoven. Um pedacinho delicado de chocolate voa em direção à sua boca, um sorriso de criança dança nos seus lábios indecisos.
Eine kleine Nachtmusik me faz lembrar que ela é hoje o único esplendor da minha vida. Herrlichkeit. Quarenta vezes ouvimos a sinfonia número igual de Mozart, e a quinta do Ludwig parece nove, de tanto que cresceu entre nós dois. Vejo em seus olhos um sono que ela diz que não sente, vontade absoluta de tocar-lhe os pés descalços, mas me contenho no meu canto e no meu grito.
Ao seu lado uma Lolita de trancinhas, cavalgando em pêlo um cavalo branco chamado Volúpia. Por último, vem Ravel derramando seu Bolero sobre aqui, e ela me diz que acabam de pousar em sua mente os prazeres carnais da vitória desejante.
Só me resta beijar-lhe as mãos, como se lhe beijasse os pés.
E levá-la, como se eu fosse.
(Nossas noites estão apenas começando, Janaína.)
Chamo Kitaro com seus dois tambores, e fico pensando.
As mulheres que amo não podem ser tão belas ao ponto de excluir o raciocínio. E, caso o sejam, procuro reduzir-lhes a beleza com os meus próprios olhos — só para salvá-las de uma perda irreparável. Me lembro agora de Jeane, a feiticeira que tem um quê de Mim, o arquétipo da beleza exagerada. Alfredo me olha de dentro do aquário, dizendo que tem saudades dela. E me lembro da sorte que tenho, pois nem preciso ornar-me de fitas: a dignidade já me basta.
Treze: esse número exerce impressionante fascínio sobre mim, não pela idade que pode representar mas pelo número em si. O vento que me refresca é o mesmo que agita seus cabelos. Agita loucamente como se agitasse uma bandeira.
E meu coração sussurra, enfim: "ela veio".
— Treze anos.
Inocente anjo feito de paixões e olhos negros. Penugem de âmbar em pernas puras e mãos de seda que me agarram sem que saibam bem por quê. Só posso me apaixonar de novo: é a vida. Há corações inocentes desenhados no mármore da escada. Logo logo uma Lolita estará dormindo em minha casa, sozinha — no outro quarto. A palavra que ela me evoca é Ternura. Hoje eu me chamo Humbert Humbert. Batem de novo à porta: desta vez é o Sr Vladimir Nabokov que veio trazer-me a alma que de mim se havia perdido e vagava pelo mundo. A primeira coisa que faço é velar o sono dessa menina — à distância. Fico acordado a noite toda, posso ouvir até sua respiração encantada. Bem de manhãzinha, quase ainda madrugada, coloco Beethoven (Clair de lune, primeiro movimento, repetindo, repetindo) — e eu espero que ela se acorde naturalmente.
"Que música mais linda!" — disse-me alguns minutos depois, com carinha de sono e de anjo ao mesmo tempo.
Vibrei.
(Amo-a mais ainda por isso mesmo!)
O sol, o sol já se levanta outra vez. Cachorros cantam lá fora com sua voz melodiosa sinfonia de aus. E o silêncio absoluto começa a respirar os barulhos que estavam escondidos dentro dele.
Amanheço em mim como se amanhecesse só.
Mas amanheço muito.
Bolinhas de lembrança na boca que se abre me trazem o gosto do vinho que bebemos noite que passou. Minhas pálpebras vacilam, meus olhos piscam incessantes, como se aplaudissem o sol que se levanta, sangüíneo, entre nós três. Outra vez, distendo meus músculos de revolução poética, e me atiro de novo em seus braços — como se fosse um fuzil. Me atiro como se fosse pólvora.
E então peço à empregada:
— M., não troque os lençóis: foi neste cantinho da cama que ela encostou seu erotismo de musa. Não lave este copo: foi nele que tomamos o último vinho. Não tire nunca mais do banheiro aquela toalha azul clarinho, pendurada logo após o banho dela.
E então eu peço ao meu pai:
— Deus, não me tire do nariz o seu perfume, não tire dos meus olhos sua imagem, não tire do meu peito seu amor, nem me tire a vontade enorme que tenho de ser dela.
Me lembro de uma só palavra em alemão: Jungfräulichkeit.
A cada dia fico mais puro. Seu nome agora é Joyce Ann! Perto dela minha prudência perde a razão e meu espírito perde o fôlego. Como você pode perceber, sou fascinado por abismo; e o verdadeiro abismo é o que não tem referencial fixo. O abismo profundo, real — tanto pode ser para cima quanto para baixo, tanto para fora como para dentro. O verdadeiro abismo, este mesmo em que agora salto, em que já saltei, não é um lugar — nem a ausência de um lugar.
É um estado de espírito.
Sou fascinado por abismos, mas não por quedas.
Não é preciso cair, basta saltar — abraçado à vertigem.
Você sabe.
Sou as vezes meu escravo e outras vezes meu senhor. Como escravo não me obedeço, e como senhor não me domino. Cavalgo-me como se eu fosse meu próprio cavalo enclinado.
(Todos os hipócritas pensam que um dia venderei minha alma ao Diabo. Mal sabem, os coitados, que há muito tempo já comprei a alma Dele. As duas. E paguei à vista!)
Mesmo sabendo-o defectivo, flamejei meu verbo por Joyce Ann. A primeira vez que apalpei seus peitinhos quase morri de amor. Eu já havia feito massagem demorada na irmã de Juliana, e Joyce Ann nos assistia, delicada — interessante. Vejo dois olhos vivos, observando meus ademanes poéticos, românticos, dramáticos. Ama-ciei então com seda minhas mãos de creme, ajoelhei-me puro e gostosinho ao lado dela, e perguntei, braços levantados em posição de ataque:
— Posso?
— Sim... — respondeu como se já esperando por isso.
Pedi-lhe então que se deitasse no chão da sala onde havíamos dançado, apaguei as luzes, esqueci dos presentes e dos ausentes — e armei-me da inocência mais profunda que fui buscar dentro de mim. Levantei um pouco a blusinha azul, passei creme em sua barriga suspirante e mais ainda em minhas mãos. Deslizei meus dedos por toda aquela geografia de escândalo, inundei de branco e de pureza o seu umbigo. Depois, fiz mira no coraçãozinho dela e atirei poesias a esmo, como se fosse um arqueiro zen enlouquecido de amor.

— Sem limite, Joyce Ann?
— Hmm-hmm — nasalou a resposta, olhos fechados.
Jon Bon Jovi, no fundo, me dizia como se fosse eu: — It's Just Me. Me entreguei completamente! Quando voltei a mim, Simone, a irmã, nos olhava, perplexa. Fiz de conta que não era comigo, coloquei mais naturalidade ainda nos meus toques, mais creme e mais delicadeza em minhas mãos, e continuei. Com o indicador frente à minha boca respeitosa, pedi-lhe que mantivesse o silêncio na catedral do nosso amor.
— Shhh...
"It's just me".
Naquela oportunidade comecei a perceber que tudo passou a ser secundário. Everething but the girl. Joyce Ann, eco nasalado no céu da minha boca, carrilhão de gostosuras desdobrando para sempre a minha língua.
Milagroso óleo de Lorenzo que me cura e me procura!
Por isso, digo: Muito melhor é ser um trapezista cego voando a trinta metros de altura sem rede que lhe ampare se cair — do que ser um palhaço apenas que rola seu sorriso cansado pelo chão coberto de serragem triste.
Você sabe que a vida é um circo, cuja lona fica sempre aberta, escandalosamente aberta. Só não sabe qual será o seu papel.
(Nem se vai mesmo cair.)
A incerteza é que o sustenta no ar.
Eu, quando acaricio o corpo do amor, não quero ganhar nada — quero é me perder. Quando encosto o joelho no joelho da minha amada, também não quero nada — só quero me encantar outra vez com essa delícia inocente. Quando amo, não quero vitórias, quero me entregar. Em todos os atos puros de amor eu me dou, complexo, todo, imaculado. Coberto de inocência, candura e desejo.
Então posso dizer, sem medo de errar:
— Amo.

Hoje, não-sei-quanto de já-eiro do ano passado, quero só ficar aqui, escrevendo, enquanto meu amor, descalça, lê num canto da sala — ambos imersos em distância e silêncio. Quero continuar vivendo com puro prazer essa solidão assistida, quero ter meu sossego sustentado por respeito mútuo e devoção recíproca. Mais tarde, talvez, nos daremos conta que somos dois, ambos desocu-pando o mesmo espaço infinito nesta geografia de amor. Então, nos daremos as mãos e nos amaremos de perto — de peito, de alma. Nos daremos de novo, de coração. E nos amaremos ainda mais — como se fosse possível.
Neste momento, escrevo à luz de velas, e Fernanda lê Alan Watts. Ao fundo, no outro canto, Jon Anderson seduz Vangelis.
É a vida — e se você não a entende ainda dá pra parar.
O desejo está na origem de todas as estrelas.
Quando tocamos o clitóris de uma delas, a noite escancarando de luar as pernas das estrelas abertas — isso é antes de tudo um exercício lingüístico amoroso e sideral. Amar um amor que já não amo é como defender uma idéia em que já não creio. Violentar a Razão — por qualquer razão — é um completo, é um terrível absurdo.
Assim como estuprar meu coração não me interessa.
(Nem a você deveria interessar.)
Sou capaz de colocar minha vida em tuas mãos se elas me tocam com amor. Por algum tempo, posso até me entregar, transferir minha alma inteira para dentro do teu corpo. Transformar-me num enorme coração apaixonado — e saltar no fundo mais profundo do teu peito. Mas, o poder de retornar continua sendo meu. Posso até dobrar um dia minhas duas asas, e deitar-me solto no teu colo.
— Mas jamais as cortarei!
(Asas demoram muito para crescer de novo.)
Eu sempre dobro minhas asas, em todos os sentidos. Às vezes, dobro-as como coladas fossem ao meu corpo, para facilitar a queda nos teus braços de ternura e romance. Outras vezes, por amor à Liberdade, dobro-as para poder ter quatro delas ao mesmo tempo.
E voar pra bem longe de você!
(Urgentemente.)
Aprendi a voar vários tipos de vôos, para toda ocasião.
Depois que tomei o verdadeiro gosto pela coisa, ficou muito mais difícil rastejar. Pouso às vezes, é claro — e tenho o poder de pousar onde quero, desde que o lugar, ele mesmo, não se esquive. A hora do pouso e quanto vai durar — sou eu quem decide. Se fosse diferente, nada faria sentido na vida. Nunca perderei a capacidade de levantar vôo, na direção que quiser, e pelo tempo que pretender.
Sou eu que determino as condições do vôo.
Não abro mão dessa prerrogativa.
Meu contrato é com o vento.
— Informal.

Estou agora acorrentado para sempre à Liberdade.
A chave de ouro do cadeado metafórico que a Ela me prendo foi quebrada em mil pedaços, e jogados no fundo de sete mares diferentes. Morrerei ao lado Dela. Mas, antes, viverei muito ao lado Dela — gostosamente. Meus braços, pernas, cabeças estão para sempre atados a Ela. Meu espírito, minha vida, meus amores, meu passado, meu futuro, meus desejos — tudo está ligado a Ela. Inseparavelmente.
E faz tempo que vejo que isso é bom.
Eu sinto que isso é bom.
Mas acho que você — você — jamais será livre!
Porque, se um dia for livre, livre de verdade, poderá realizar as loucuras todas que sempre quis — e que supunha não poder. Como você não tem coragem de fazê-las, é melhor por isso mesmo não ser livre de verdade. E debitar isso tudo à suposta falta de liberdade. Mas quando bate o desespero a gente pendura as esperanças em qualquer ganchinho que aparece.

Se, por acaso, as circunstâncias da vida te arrastarem para uma espécie de liberdade total, eu sei que você vai reagir — e se agarrar às mesmas coisas antigas. Você vai se apegar com tristeza àquele passado seguro, contido, cinzento. Vai inventar dependências, criar laços, ligações, relações, compromissos, contratos.
— Cada vez mais!
(Uma bela desculpa para continuar medíocre... e preso.)
Ou seja, você nunca será livre de verdade.
Meu caso é diferente.

Você anda na linha do trem — eu danço num arco-íris.

Sei que o medo só viceja na ausência de coragem ou na falta de razão. Mas como razão e coragem me sobram, nunca terei medo.
Por isso sou livre.
Porque tenho a Sabedoria de Fazer Escolhas!
Fico pensando.
O ano da Terra tem 365 dias e seis horas. Para que tua vida amorosa seja louvável, basta que você tenha apenas seis horas de orgasmo profundo por ano. Calculando: se cada orgasmo durar um minuto (e orgasmo de um minuto é coisa fantástica...), então você terá cerca de trezentos e sessenta orgasmos por ano.
Basta — pra começar.
(Se você ainda não entendeu, calcule de novo.)
E se é verdade que o orgasmo de um porco dura mais de trinta minutos, acho que na próxima encarnação vou querer demais correr o risco de virar torresmo... Porque cada um de nós tem que encontrar sua própria forma de expressar seus sonhos.
Meu único herói sou eu.
“Espero que os Deuses cuidem de você na minha ausência”.
Coloquei aspas na frase pois Joyce Ann me disse ontem algo parecido quando trouxe a biografia de Che Guevara escrita por Jon Lee Anderson. Que Deus cuide de você também quando eu me for...
Espero que ela não se vá.
Contudo, se um dia se for, cuidarei de Deus eu mesmo.

Temos que ser infiéis às nossas convicções.
Ou não mudaremos jamais!