27.3.10

se acaba o mistério

Os deuses não podem ser cotidianos. Se acaba o mistério, morre o encanto. Ao passarem a dormir juntos na mesma cama, aqueles que se amam assinam a sentença de morte da sua paixão. Kundera já me dizia do horror que é o sono compartilhado. É fatal. Doçuras repetidas se desgastam de forma irreversível. O açúcar vira sal. Excesso de presença faz buracos enormes na paixão — e o Amor não resiste. Ainda que seja preciosa uma pedra, se a polirmos demais ela perde seu brilho. Às vezes, uma correntinha de ouro não passa de um nó na garganta. Outras vezes, nos enforcamos com um maravilhoso colar de pérolas gregas. Impossível continuar amando alguém que se vê todo dia — a menos que se chame de "amor" essa coisa sem nome que às vezes sentimos...


Isto são reflexões de um personagem do meu próximo livro Teoria do Acaso. Página 201. O livro de Kundera a que ele se refere é o belíssimo Insustentável Leveza do Ser. Eis um trecho: "Um sobre o outro, eles cavalgavam juntos. Iam juntos em direção às distâncias desejadas. Atordoavam-se numa traição que os libertava. Franz cavalgava Sabrina e traía sua mulher, Sabrina cavalgava Franz e traía Franz." Leia aqui o livro do Kundera.

23.3.10

el dia que me quieras

Nasci em Moscou. Duas simpáticas amas cuidavam bem de mim, falando sempre em espanhol e inglês. As jóias da família permitiram que eu viesse a estudar em Cambridge. Publiquei meu primeiro romance aos 39 anos, depois que uma Lolita surgiu em minha vida. Ou nasci talvez em Buenos Aires, e descobri o Alef enquanto minha mãe ouvia El dia que me quieras, cantada por um uruguaio conhecido por Gardel. Papai era violinista, minha avó lia a Bíblia em inglês para mim todos os dias e nossa biblioteca tinha três mil volumes, fiquei cego, virei gato. Ou, na verdade, nasci em Itararé, numa casinha de madeira ao lado de uma roseira branca, no finzinho de uma rua principal; minha mãe era cantora lírica e meu pai, um comerciante de pedras preciosas que gostava de Robert Louis Stevenson; já li mais de mil e quinhentos livros, já amei mais de mil e quinhentas mulheres. E publiquei meu primeiro romance, “Beijos no céu da boca”, aos 23 anos.

Não sei em qual dessas três histórias eu mais creio.
Não sei qual delas é a mais fantástica.

20.3.10

poema para minha mãe

Dê um click na imagem e leia o original.


Em 1980 minha Mãe era assim:


19.3.10

o que eu sinto

Culpa, medo, ódio, vergonha, ciúme ou rancor: eu não sinto nada disso!
Eu só sinto Amor!

E você?

16.3.10

meu pai ressuscitou

Quando meu pai chegou em nossa casa na manhã seguinte eu estava no armazém, escrevendo num papel de embrulho um poema de amor, mentalmente dedicado a Sonia Maria, e que era assim: “Depois de acender estrelas / no teu céu da boca / depois de vasculhar os teus encantos / depois de ultrapassar os teus limites / acabei concluindo / que só a união / de duas grandes espontaneidades / pode gerar / e manter / por algum tempo / um belo caso de amor”.
Em voz alta, meio sonolenta, leu duas ou três vezes esse poema, passou carinhosamente a mão na minha cabeça e antes de ir para o seu quarto rosnou um elogio inesperado: “Bonito, filho! Muito bonito! Escreva mais, escreva mais!”
(Eu só tinha doze anos, e acho que esse elogio me levou a ser hoje um escritor.)

Alguns conselhos que ele me dava: “Não minta. Não roube. Não fume. Não beba demais. Não se misture com a ralé. Nunca coma de marmita. Não bata cartão de ponto. Não use sapatos velhos. Estude bastante. Nunca brigue com tua mãe. Leia dois jornais por dia. Ouça rádio. Respeite tua vó. Encaminhe teus irmãos.”
(Segui todos esses conselhos. Só os irmãos é que não consegui encaminhar com meu estilo de vida: ficaram todos “normais”...)

Meu pai nunca nos disse que gostava de poesia, mas certa vez mandou que plantassem trezentos e sessenta pés de girassol no fundo do quintal. Depois que as plantas cresceram ele ficava todos os dias lá no fundo, sentado feito Cazuza num banquinho de madeira, sorrindo, olhando os girassóis girarem. Ele — no fundo, no fundo — talvez fosse um poeta, mas nunca nos contou.

Quando morreu, morreram as circunstâncias carcereiras de si mesmas que eu trazia no meu peito. Embora houvesse ainda um monte de coisas não resolvidas, penduradas num passado que teimava em resistir, foi fatal o tipo de adeus que nos ligou aquele dia. Antigas imagens opressoras se apagaram com o tempo, uma a uma. Tudo que de mal havia foi-se antes, ficando livre o terreno para que pudéssemos talvez amá-lo um pouco. Vivíamos uma suspensão temporária das hostilidades, uma espécie de paz armada, com certas escaramuças de vez em quando na fronteira do nosso amor.
As lembranças mais recentes eram brandas, quase delicadas, com exceção da pressa e de algumas ilusões. Claro que foi chocante sua partida, a forma como se deu. Assim como a nossa, a vida dele era um jogo — e o perdeu.
(Quando descasco a cebola da existência meus olhos ardem.)
Mesmo as oito horas que se passaram entre a ciência da sua morte e a visão do cadáver por sobre a mesa não foram suficientes para acalmar meu coração alvoroçado. Embora vencedores, os filhos trazíamos na boca um amargo sabor de derrota iminente: talvez um maior inimigo já estivesse à espreita das crianças que éramos então. Porque imprescindível seria o retorno da mãe que aparentemente pretendia morrer para salvar-se daquela vida.
À beira do caixão eu descobri que meu pai passou a ser meu mais recente amor eterno. E declamei para ele, em silêncio, o poema com esse título que criei na hora. Chorando lágrimas secas.(Depois eu declamo o poema pra você também.)

Naquela noite minha mãe arrumou-me a cama em que ele dormia, no quarto que fora meu quando morava lá. Cumprindo ordens de um deus que só ela ouvia, puxou-me pelas mãos quase chorando e me disse, séria — não como mandasse, nem como pedisse:
— Você dorme aqui.
Olhei para o duplo símbolo de morte, vazio que esteve antes de mim, agora bem arrumado e com muito amor pela mulher que passou a ser viúva de si antes mesmo de lhe morrer o marido. Era como se passasse creme nos meus pés rachados... De novo olhei firme para a cama e o lençol de metáforas que a cobria, e aceitei jogar ali por um dia o meu corpo. Mas disse à minha alma assustada:
— Vai-te agora para bem longe daqui!
“Voa, alma, voa rápido — mas volta, por favor, volta buscar-me amanhã de manhã!”
(Ela voltou.)

14.3.10

colônia de vermezinhos

Dizem que havia uma colônia de vermezinhos graciosos no fundo de um lodaçal. De vez em quando, alguns subiam à superfície e nunca mais voltavam. Isso deixava perplexos aqueles que permaneciam no fundo. "O que será que tem lá em cima, que tipo de perigos pode haver?" — eles se perguntavam.

Até que certo dia um deles acordou, pôs as duas mãos no coração e prometeu sinceramente aos seus irmãos: — Vou subir, e depois volto para contar a vocês como é o mundo lá em cima. Preparou-se muito bem, leu Osho e Henry Miller, armou-se de inocência e de coragem, aguou suas plantinhas, despediu-se dos amores, atualizou o blog, desfez as malas — e subiu.

Ele tinha intenção de voltar. Mas, assim que chegou à superfície, viu a Luz, transformou-se numa libélula, criou asas — entusiasmou-se! — e voou livre como um louco para o azul do céu...

E agora já não pode mais retornar ao fundo.

Morreria se voltasse!

Certas promessas jamais serão cumpridas.

11.3.10

amo todos os meus amores

Marina adora fazer amor à tarde, no crepúsculo cor de abóbora da praia de Pitangueiras. Rose prefere os elevadores vazios nas madrugadas silenciosas. Janaína, lençóis negros de cetim ao som de Jon Bon Jovi. Fabiane sempre fica nua quando descemos a Serra em noites de lua cheia. Daniela dança como ninguém. Luísa sempre chega de surpresa, com saias floridas e uma garrafa de vinho. Fátima tem o corpo mais perfeito que já vi em toda minha vida. Adriana conhece Paganini na ponta da língua e me conta histórias bonitas. Suzana sabe fazer pudim gelado e adora o risco de saltar profundo. Joyce Ann tem a delicadeza de Vênus — e incentiva todos os meus amores.

Elaine é aquela cujo nome é outro e mora aqui mesmo no meu prédio. P tem o erotismo inocente dos treze anos; D, a experiência deliciosa dos 40. Alessandra parece ter nascido na ilha de Lesbos: adora fazer amor a três. Ana é sensual até debaixo dágua, e vive lendo Henry Miller.
Andressa é a maior expressão de que a natureza pode ser perfeita, em todos os sentidos. Beatriz é a nova doce musa que agora já desponta, exuberante. Todas são lindas e amáveis — e nenhuma delas me suprime a liberdade. Tem ainda Juliana, a filha belíssima da costureira que me tira medidas demoradas... E tem você, por todas as razões que nem preciso dizer. Ah, tem também Carol, aquela menina das meias brancas que a mamãe lava com sabonete Dove, e que estuda no colégio ali da esquina.

Agora você talvez entenda o porquê de não escolher uma só.

Escolher uma delas — e desprezar todas as outras — seria uma ofensa. Sufocar vários corações em nome apenas da moral é lamentável. Seria um absurdo. Uma traição à Vida. Uma ofensa desnecessária ao Amor e à Liberdade.
Além de ser uma ofensa, seria um desperdício imperdoável..

5.3.10

mulheres

Dia Internacional da Mulher

Não me bastam os cinco sentidos para perceber-lhes toda a beleza. Não me bastam os cinco sentidos para viver com totalidade o mistério profundo que elas trazem consigo. Eu tenho é que tocá-las, cheirá-las, acariciá-las, penetrar-lhes o sorriso, sentir o seu perfume, beijar-lhes o céu da boca, ouvir suas histórias, transformá-las em deusas. Tenho que dar-lhes o amor que o meu corpo conduz e sustenta-me a alma. O belo amor natural por todas as coisas do mundo. Como espelho de paixões em labareda, tenho que sentir nos seus olhos um raro brilho diamante.


Eu as respeito e as venero — com a graça de um cisne que dança num lago tranqüilo e a ousadia de um touro selvagem recém-despertado. Não lhes faço perguntas, não as pressiono por nada, não lhes tiro a liberdade, não quero mudá-las jamais. Sempre imagino o que estejam sonhando, e pulo de cabeça no sonho delas. Cavalgo o vento para visitar-lhes as razões, as emoções e as loucuras. Como um deus escandaloso e surpreso por sua própria criatura, entro no coração de cada uma delas, deliciosamente, como se entrasse numa pulsante catedral. Mergulho na essência dos seus desejos e cada vez me espanto mais com tanta fantasia. Os cinco sentidos, por não serem precisos, ainda não bastam, e preciso mais do que isso para compreendê-las.


Toda mulher é silenciosa por dentro. A existência pura se manifesta em cada detalhe. Assim na terra como no céu, amar as mulheres é uma experiência religiosa. E eu as amo, fina substância, como deve amar quem ama de verdade — incondicionalmente. Sem ciúmes. Eu amo as morenas, as loiras, as baixinhas, as altas, as lindas, as quase feias. Amo as virtuosas, as magras, as gordinhas, as diabólicas, as tímidas — e até as mentirosas. As iluminadas, as pecadoras, e as santíssimas. Amo as virgens, as pobres, as ricas, as loucas, as muito vivas, as inocentes. As bronzeadas pelo sol, e as branquinhas. As inteligentes — e as nem tanto. Desde que sensíveis, eu amo as jovens, as maduras, as solteiras, as casadas, as separadas. As bem-amadas, e as abandonadas. As livres, e as indecisas. E se me dessem o poder, o tempo e, principalmente, a chance, eu a todas elas daria, todos os dias, um orgasmo cósmico, poético e sublime.


Apanharia flores silvestres, tomaria sol com todas elas. Andaríamos descalços na areia, contemplaríamos crepúsculos cor de abóbora, jantaríamos à luz de velas, dançaríamos, tomaríamos vinho branco, olharíamos as estrelas. E eu lhes faria poesias de amor. Puro como um anjo, amaria cada uma delas eternamente — uma por vez. Com delicadeza, com doçura, com profundidade, com inocência. Entusiasmado, como se cada uma fosse a única. Como se no mundo inteiro não houvesse mais nada, nem ninguém.


Todas as noites, passaria cremes e encantos no seu corpo. Falaria sobre fábulas, contaria histórias românticas, as veria dormir. Ouvindo Beethoven, velaria por um tempo o sono delas, e, de madrugada, antes do sol raiar, antes do primeiro pássaro cantar, as cobriria com o resto de luar que ainda houvesse, e sairia em silêncio. Como um felino lógico, sensual e saciado, deslizaria pelo cetim azul-celeste dos lençóis, saltaria por sobre todas as metáforas — e sorrindo iria embora.


Enfim, se por acaso fosse Deus, eu com certeza não mais ficaria cuidando do universo e dessas outras coisinhas banais. Não ficaria controlando o destino das pessoas, o tempo, os compromissos, a pressa, o caminho dos planetas, a economia, o cotidiano, o infinito, os genes, a Internet, a gravidade, a geografia... Não!


Eu somente iria amar as mulheres, como elas merecem — e como nunca foram amadas.


Só isso, definitivamente. Nada mais, nada mais!


Edson Marques

Publicado também AQUI.

4.3.10

orelha

Prêmio Cervantes/Brasil.
Conto.

A Orelha

Quando ganhei o Prêmio Cervantes, ela não foi comigo, porque não suportaria me ver tão amado pelas outras na cerimônia. Dora me dizia que seu ciúme esmagava-lhe a própria alma. Aquele câncer chamado ciúme aumentava-me as dores e as penas, amputava-me as asas, me amarrava, prendia. E um poeta de asas cortadas vai ficando gelado.
Minha vida virou uma verdadeira prisão.
Só me expressava escrevendo.
Sempre acreditei que as circunstâncias fazem os homens na mesma medida em que os homens fazem as circunstâncias. Mas, os acontecimentos daquela tarde levaram-me a concluir que há um certo predomínio das circunstâncias sobre os homens.
No fundo, aquela foi uma tarde que esperei por muito tempo, planejando-a, tentando moldar-lhe os menores detalhes, e querendo, desesperadamente, fosse ela, quando acontecesse, da mesma forma que construída pela imaginação. Elaborei fantasias as mais ridículas, chorei às vezes até não mais poder, engasgando-me com soluços que pareciam pedregulhos.
Não raro perdia-me naquele resto de realidade que a vida me dava de presente, e por dentro sugava-me estranha vontade de mudar com violência o que sempre havia conseguido aceitar.
Aquela espera foi se transformando em mais uma tortura.
Porque não passava de uma espera passiva e de certo modo desnecessária. Passei a ter pesadelos horríveis, em que duas mãos crispadas e sujas tentavam sufocar-me. Acordavam-me então os companheiros de infortúnio, por força dos meus gritos de pavor. Isso era constante.
Faltava-me a fome, abandonei os projetos de fuga, os amigos se afastaram.
Permeando toda essa situação de tempo e de lugar, a desfocada lembrança, imagens que a memória me trazia com insistência. Assim como Abraão, o patriarca do povo judeu que levou seu povo ao Canaã, meu pai também ouvia vozes, e nos levou ao Paraná.
O chuvisqueiro enviesado continuava martelando-me as costas com suavidade quando senti sua voz me chamando, baixinho:
- Chegamos...
A fronteira ficara para trás, mas nosso estado continuava precário. Eu não entendia por que era prometida aquela terra. A quem? Essa dúvida me angustiava, talvez porque promessas foram o fundamento daquele meu tempo, um tempo escasso, sem solução, em que nada havia que não fosse provisório.
Era sempre um tempo de passagem.
Ele vinha em mangas de camisa, xadrez, que a chuva enegrecia e colava-lhe ao corpo. Havia me coberto com seu paletó, aquele mesmo azul-marinho do casamento. De vez em quando, acariciava-me o rosto, com gestos puros que ainda hoje moram no meu peito, inesquecíveis, demorados.
Abri um pouco os olhos, vi luzes da cidade brilhando em conta-gotas, um colírio. A botina esquerda apertava-me o pé, ainda nova, quase uma comemoração, um presente prometido quando ajudei na última colheita do feijão das águas.
Levantei-me sobre o braço, encolhido, sentindo cheiro de terra e um pouco de esperança. Meu pai incentivou a marcha do Estrela com o chicote, virou-se para meu lado e, quando nossos olhos se encontraram, tentou profetizar:
- Agora as coisas vão melhorar, se Deus quiser...
Passei a mão torta pela testa, afastando o cabelo escorregado, num gesto de quem não pode acreditar.
- Você vai entrar na escola...
Estrela era o nome do meu cavalo, já dado em promessa a um santo, não sei qual. A charrete era azul, desbotada, velhinha, o nosso meio de transporte. Em cima dela, sonhava com lugares novos - mas tudo era igual.
Embaixo do banco, nossas roupas, poucas, amassadas no saco de farinha, as panelas barulhentas, a espingarda.
E o retrato da mãe, - pensei, - onde estará?...
Constatei que, apesar da pouca idade, já conseguia ter passado e memória. Meu passado se resumia na desesperada lembrança que eu tinha de minha mãe. Atirei-lhe uma pedra na testa. Lembrança meio confusa. O sangue desceu-lhe por sobre os olhos, que suas mãos procuraram em vão escondê-los dos meus, para poupar-me talvez o susto pela pontaria, que a partir de então seria sempre certeira. Se chorou, não me lembro. Estava com ela pertinho do poço, o balde descendo no rodar cadenciado da manivela já gasta. Roupas na tina marrom, de barril, a menor - azuis, brancas e vermelhas, se não me engano. Um lenço escondendo-lhe os cabelos que nunca soube o verdadeiro comprimento, escuro, emoldurava-lhe o rosto cheio de gotinhas, não sei se de orvalho, não sei se de suor.
Dedos pálidos, enrugados, cheirando a rosas.
Voltei a ouvir o trote cadenciado do Estrela, que às vezes chutava pedregulhos. O braço começou a doer. O chuvisqueiro continuava, fraco, como véu feito de riscos frente às luzes.
Dá-me pouco pão e ainda me castiga - devo ter pensado, quando saltei do carrinho de lata, aquele verde, espantando uma galinha, e joguei-lhe com força uma pedra no meio da testa: o sangue desceu-lhe por sobre os olhos que suas mãos procuraram tampá-los dos meus. Em vão: o susto permanece até hoje, e talvez seja a causa primeira desse processo caótico de espera.
A charrete balançava-se num ritmo redondo, as rodas giravam produzindo um barulho meio surdo: fi-res-to-ne... fi-res-to-ne... - era a marca do pneu, e minha mãe soletrava assim. Ela sabia ler. Eu
gostava dela. Picada por cobra, morrera havia três meses, sem tempo, segundo meu pai, de chegar à Santa Casa. Disse-me que tinha ela os olhos cansados. E que inchou. E que nunca mais eu a veria.
Lembro-me agora dos mosquitinhos que caíam no meu prato de sopa de macarrão cortado, lá no sítio, no banco de madeira ao fim da tarde, a fome infantil enorme, o futuro meio ausente, o mormaço, o medo, a hora das aves marias voando na minha cabeça.
Outra coisa de que me lembro era o bolo de fubá. Seco, feito sem manteiga, esfarelava na boca, mas como era gostoso com café preto, lá no morro da melancia. O riozinho tortuoso, onde me dava banho com sabão de cinzas, o rio maior, que tinha peixe e que era fundo, um perigo. Minha mãe sempre me parecia a melhor mãe do mundo. Queixava-se constantemente de dor de estômago, principalmente à noite, ao irem para cama, ela e meu pai, quando então eu aguçava meus ouvidos para captar seus diálogos. E a conversa, às vezes ríspida, girava sobre caminhos diferentes na vida deles, mais filhos ou menos filhos, pobreza, injustiça, lavouras...
Coitada da minha mãe: vivia sempre disfarçando com sorrisos lentos a vagarosa dor da vida.
- E o retrato da mãe, pai?...
Demorou para me responder, sem olhar-me nos olhos, com voz fraquinha, meio rouca, desanimada:
- Tá no bolso, na carteira...
Interessante: parece-me que nossas frases, mesmo aquelas mais decididas, eram sempre reticentes, pastosas, doloridas. Lembrei-me de minha irmã, com suas perninhas frágeis, e que morrera como se não tivesse tempo para viver. Passava o dia todo deitada num velho berço improvisado, olhando nuvens de sorvete no céu do Paraná. No retrato, ela estava ao lado de minha mãe, e isso me causava um certo ciúme. Morrera sem tempo de deixar saudades, mas, diziam-me, estava morando com deus, cercada de anjos. E com muita saúde. Um vestidinho dela ainda era guardado, de bolinhas vermelhas, com alguns buracos pequenos que pareciam enfeites.
Quando crescer, vou tirar um retrato bem grande... - confessou-me o Cartier-Bresson que havia no meu peito. Um retrato onde aparecesse, além de mim, só o infinito azul do céu. Voltei-me à posição inicial, ajeitei o paletó por sobre o corpo, fechei os olhos com força, engoli fosfenos em seco, senti a barriga roncar outra vez.
Era fome, mas fiquei com vergonha de falar.
Foi assim que entramos na terra prometida, eu e meu pai - sacolejando ilusões numa charrete azul puxada por estrelas e ternuras.
Acontece que essas lembranças, com precisão fotográfica, perturbam-me.
Se houve épocas em que cheguei a questionar até a validade das carícias, a necessidade do contato físico amoroso, isso se deveu à ausência dos carinhos que sempre me negou, quer pela distância, quer pela mentira.
Passei a ter impressão de que a notícia de sua vinda começava a prejudicar irremediavelmente aquela situação de equilíbrio emocional entre o mundo desgraçado em que vivia e o conjunto instável das minhas aspirações.
Terei sido eu o primeiro a criar a necessidade dessa distância que passou a existir entre nós, ou preciso mesmo dessa geografia de excessos para manter apagadas minhas concepções mais antigas com relação ao que posso gostar?
Ninguém tem culpa de ser o que é, e nem pode, por si mesmo, ser de outra forma.
Alguns precisam de ajuda, mas nem todos se permitem essa humildade.
Muitos talvez não tenham conserto, e outros não têm consciência. Todos quase sempre se enganam, às vezes na qualidade da promessa, outras vezes no tamanho das expectativas.
Chorar em ombros amigos foi coisa que nunca soube nem pude fazer. Não que me faltasse a vontade: faltavam-me ombros amigos, e meus olhos não tinham mais lágrimas.
Minha vida é uma porta que se abre à história mas se fecha aos meus amores. Meu contraído corpo de réptil me envergonha, me atrapalha e desespera. Os ódios que suponho sentir me enrijecem, e não me deixam sequer perceber o cheiro das coisas livres. Esses anos todos aqui dentro mudaram-me radicalmente. Mas não sei se fui modificado mais pelos anos que se passaram, ou se pela cadeia propriamente. Ou se por ambas as
coisas. Aqui, a gente vai percebendo o reverso da medalha. E percebendo de uma forma diferente, pois as perspectivas vão se tornando caóticas, o leque de opções vai se fechando, as oportunidades, diminuindo.
A gente passa a não mais saber de que lado ficou a verdade.
Em certos momentos, começamos a ver que todo realismo tende a ser conservador. Porque o sonho é sempre mais importante do que a realidade que o suporta.
A tarde surgiu bonita, apesar de que o sol de inverno, esmaecido, quase nem sombras fazia no pátio da nossa espera. A calma daquelas coisas dormidas me afastava da razão, o nó na garganta entorpecia a fala mole.
Sentado no primeiro banco, logo à entrada do portão principal, esperava minha mãe. Meus dedos tamborilavam na madeira, como se a tarja negra da sujeira das unhas executasse um balé de prisioneiros. Na verdade, esses dedos queriam chorar a iminência do inevitável. O corpo todo tremia.
Procurava não olhar em coisas que tivessem olhos de retribuição, ao mesmo tempo em que mastigava a liberdade da minha língua, e mordia os lábios ressequidos por falta de vitaminas. Triste o papel que teria de
representar por força daquilo que agora chamo de determinismo absoluto.
Senti dores no estômago. Como a ansiedade não me deixou novamente almoçar, talvez fosse fome.
Muita gente passando, abraços, sorrisos, fogo acendendo cigarros, saudades e paixões. Não será ela uma dessas que passaram? Não, o guarda iria trazê-la até mim, não seria capaz de reconhecê-la, suas feições já não devem ser as mesmas.
Comecei a montar o desesperante cavalo da angústia.
Parecia-me que apenas eu estava sozinho. A espera da mãe que supunha morta misturava-se à promessa de escola que meu pai fizera, e que nunca se concretizara. E foi nesse momento, aguardando mais uma promessa, que levantei a cabeça.
Não gostava muito de mulheres será que dela iria gostar? Será que aquele encontro seria um renascimento, pelo fato de que ambos iríamos nos re-conhecer? Terá sido ela, realmente, culpada disso tudo? Será que não teve razões em fazer o que fez?
Não consigo me lembrar das cores do vestido, não consigo. Frente a frente, depois de tantos anos. Tentei iludir-me, colocar um pouco de sentimento no olhar, dissimular talvez uma paixão que não sentia. Ela
estava com falsos cabelos loiros, muito maquiada. Lembrei-me do lenço de bolinhas azuis à beira do poço. Demoramo-nos olhando nos olhos. Brinquei de novo no meu carrinho de lata.
Estendeu-me suas mãos e murmurou algo como você está muito bonito, um homem feito... senti muito a tua falta.
Suas mãos estavam quentes.
Aquele momento me parece ainda indescritível.
(Talvez um dia possa contar tudo).
O perfume que ela usava, forte, doce, barato, chegava a excitar-me.
Idéias estranhas passaram-me pela cabeça. Ela chorou, e eu senti o gosto salgado das suas lágrimas. Acho que por momentos desisti da vingança para amá-la totalmente. Tomei-a nos braços para um beijo de amor - de amor e despedida.
Tive medo, e vontade de dizer a todos que aquela necessidade de ficcionar um delírio não passava de uma ilusão grotesca.
E a iminência do inevitável voltou a me assustar.
Algo fez-me mudar de idéia.
A lembrança do retrato em que eu estava ausente. O bolo de fubá, o abraço que ela me dava - não sei. No pátio não havia mais ninguém. Fez-se um silêncio absoluto, um silêncio gelado.
Tomei-a de novo nos braços para um beijo de amor e despedida. Soava uma campainha, dizendo que a visita chegara ao fim.
Seria agora - ou nunca mais!
(...)
A história continua.

Mas agora vou fechar as aspas que esqueci de abrir antes de acreditar nas circunstâncias. Claro que esta é apenas uma bela história inventada que o destino escreveu certa vez em meu nome. Era só mais uma peça que a vida me pregava. Em verdade, jamais trocaria minha mãe por um prêmio que me levasse à Espanha. A orelha dela foi feita para o beijo, não para a mordida.

Acontece que entre ficção e biografia existe um prêmio!

Então, volto ao presente e me questiono. Se meu amor é diferente a cada instante, como poderei te amar a mesma todo dia? Como repetir outra vez o meu risco brilhante na tua escuridão incendiada?

Ontem comprei flores para recordar o nosso amor; hoje, um frango assado faz lembrar-me de você. Ontem, chorei ao rever as nossas fotos; hoje, tomo vinho num corpo de cristal e já não sei se me arrependo. Ontem, fiquei sozinho no meu quarto; hoje, uma deusa nova me espera em nossa cama, e me sorri. Ontem, chorei demais a tua ausência; hoje - nem sequer me lembro de você. Parece ser verdade: Quem ama só se realiza ao superar a própria memória do seu amor.

Então.

Há uma pequena prisão dentro de uma grande prisão.
Por isso, o pior é quando estamos na menor.
Mas vocês não percebem que.

3.3.10

sou

Sou a música penetrando-me esta consciência do agora e sou o sol lá fora por sobre o canto das águas; sou o meu lado esquerdo, minha parte, meu todo; sou sangue, desejo, emoção; sou o doce primogênito como quis minha mãe; sou filho de mim mesmo, sou o profeta que me anuncia; sou as lembranças gostosas povoando esta sala; sou esse fogo tentando me aquecer com imagens que ainda vou ter; sou a manhã, sou hoje, maçã, caramelo, açúcar, desejo, ciência, perfume, delito e canção; sou depois, sou azul, coração, noite, madrugada, vinho, cerejas, orvalho e barulho do mar; sou os primeiros violinos que agora se mostram com todo vigor, sou o próprio Beethoven que chega para reger essa orquestra que tenho no peito; também sou o Vangelis que num simples silêncio se vai e sou agora Nabuco, e o lindo coro dos escravos hebreus.

Sou a minha própria liberdade e tudo aquilo que permite. Sou a luz do meu caminho, sou meu passo, meu galope, meu próprio cavalo, meu cansaço, meu repouso, minha luta. Sou meu sono e meu despertar, minha garganta, minha voz, sou as palavras que profiro e até mesmo aquelas que eu não digo. Sou a paz, sou harmonia que se reparte, como tudo, sou aquele que fica e o que parte, o que supõe, o criador e a criatura. Sou o pescoço do cisne branco, as asas do pássaro no vôo, sou o vento e a vela. E o sopro.

Sou o autor da minha peça e o próprio personagem, a dança e o bailarino, a música, o regente, o compositor. A ternura mais vermelha e delicada, o lóbulo da orelha do meu amor. O beijo e o orgasmo, a delícia e o licor; o êxtase e todas as auroras que ainda vão chegar. Sou o céu estrelado, a língua do horizonte — e mais além. Sou o sagrado e o profano, o profundo e o supérfluo, a origem da tragédia, o brilho e o pó. Sou mínimo e sou tanto, sou pouco e princípio, paixão, excesso e glória. Sou infinito no teu entusiasmo, e a última labareda de uma espécie de fogo em extinção. Sou relâmpago, transição, passageiro, gotinhas de chuva, pingo de mel, uma pétala de estrela.

Tao. Livre.

Por isso, nada mais é necessário porque nada é tão preciso. Não existe mais busca, não haverá posse nesse território que habito a partir de mim mesmo. Nada tenho que possa perder, nada existe que queira ganhar. Sou um produto do meu próprio trigo, sou o gume da minha própria faca, o verso da minha própria poesia, a fantasia do meu espírito em repouso. Sou meu movimento, meu ócio, meu verbo, meu Deus. Minha pátria, minha religião, meu partido, meu clã. Sou minha saudade e minha ausência de suspiros. Sou a sorte que sustenta meu corpo, o sonho enlouquecido da minha alma, a porta que se abre sobre si, a paisagem, a luz e o olho. Sou a morte do ontem, e a Vida que chega. E que basta. Naturalmente.

E como nada existe além do que eu perceba, nada mais preciso do que a incerteza que se faz presente, nada me interessa além do que me toca o coração, nada mais urgente que ser máximo, nada mais gostoso do que ser a própria gostosura, nada mais humano do que essa divina alma desejante acalmada, saciada por ter sido e estar sendo ela mesma e nada mais. Nada me falta, nada me sobra, sou agora a exata medida de todas as coisas, um conjunto vazio, um mestre discípulo de Si, um barco sem destino navegando numa breve eternidade, um verdadeiro Himalaia de razões. Sou portanto o pico de mim mesmo.

Amém.

2.3.10

espírito santo

O dia em que fui abençoado pelo Espírito Santo.

Conversamos dois minutos, mais ou menos. E eu lhe disse as minhas claras intenções. Ela sorriu sem responder, mas seu sorriso era tão espetacular, tão encantador, que tive de afastar seus cabelos com o dorso delicado dos meus dedos. Ao fazer isso pude notar a penugem inocente na sua nuca escandalosa. Sussurrei de novo a proposta poética e beijei levemente a pontinha da sua orelha esquerda. Afastei-me devagar, e ela, repetindo o mesmo sorriso, concordou. O "sim" que ela me deu esvaziou totalmente a Praia das Castanheiras.

Então me coloquei a uma distância segura de cerca de uns quinze passos, e me sentei na areia. Preparei a máquina e fiquei fotografando essa musa por quase duas horas. De vez em quando olhava o mar, mas isso era secundário para mim. Fernanda era o meu único foco aquela tarde.

Só ela.

Quando acabou o sexto filme, não fui lhe dar um beijo, nem sequer lhe disse adeus. Apenas joguei de longe um aceno carinhoso, e ela me deu mais um enorme sorriso de volta — inesquecível. Era o último, sabíamos. Nosso Pico foi aquele. Eu sabia que nunca mais a veria de novo. Fechei meus olhos e voltei para o hotel, sonhando com essa pura e doce Afrodite capixaba.

Estávamos em Guarapari, Espírito Santo, uma graça vermelha libertada. Era 2004. Hoje, portanto, Fernanda deve ter uns 20 anos. Nem lhe perguntei o sobrenome. Mas, se soubesse como, lhe mandaria por sedex as cento e oitenta e duas fotos dela que ainda guardo comigo. Perfeitas.

Qualquer dia eu volto lá.

Agora, só pra conhecer a praia!

A menos que o Espírito Santo me abençoe outra vez...

1.3.10

casamento tradicional

O casamento tradicional é um edifício assentado sobre quatro pilares: o suposto amor, a hipocrisia, a monotonia, e a supressão da liberdade. Por isso é que ele não desmorona tão facilmente.