19.12.01

Acabo de tomar um cafezinho feito com água benta. Fervida com amor na chaleira de alumínio que ganhei de minha mãe, só pode mesmo ser benta essa água.
Fico rememberando because My Joyce Will Go Ann. E me lembro do outono, sábado, 22 horas, 51 minutos, 17 de abril, pressão atmosférica ao nível do Mar Azul do Guarujá é de 759 mmHg. Ao meu lado uma prova de que a Natureza pode às vezes ser perfeita. Peso: 49,9kg, altura: 161 cm, pressão arterial máxima sistólica: 118 mmHg; mínima diastólica: 68 mmHg. Pulso: 92 por minuto.
Idade: treze. Nome: Joyce Ann.
Saudável, assustada, inocente, lolita — naturalmente.
Um pouco mais tarde, olhos fechados, a Musa torna o começo da madrugada mais brilhante que aurora trazida por Lúcifer. Sua mãe, cansada de tanto nos cuidar, vai dormir, deixando a incumbência para Simone, irmã mais velha — que meia hora depois dormiu de roupa e tudo no sofá. Ou seja, Deus, em sua magnífica bondade, foi preparando o mundo para que só nós dois ficássemos acordados esta noite. Deitada com a cabeça em minhas pernas, mãos infinitamente dadas, após nelas ter passado creme suíço Collagen Elastin, ouvíamos o disco que ela trouxera: Celine Dion. A música era My Heart Will Go On — repetindo por mais de vinte vezes.
Luzes apagadas, o controle remoto nas mãos para desregular o som de acordo com o desejo de Deus. Um pé esquerdo de sandália preta na cabeça da estátua argentina que tenho na sala. O fascículo com a biografia de Delacroix, que eu havia antes lido para ela, aberto na página em que a Liberdade conduz o povo. Detalhes que moram no meu peito como se eu fossem. Momentos que ainda me parecem o resumo dos últimos cinco mil anos de história. Quem nunca viveu um amor com tal intensidade não sabe o que está perdendo. Não sabe o que é o amor. Aciono o controle remoto, e Celine canta Immortality para nós. Então, aciono o controle imediato para tocar a vida:
— Posso tocar teu coração?
— Sim.
A resposta veio rápida, minha mão direita saltou os milímetros que a separavam do peitinho-coração de Joyce Ann. É a segunda vez em minha vida que toco seu corpo dessa forma, e meus gestos, delicados, serão inesquecíveis para mim. Sei que não devo nem posso avançar demais, porém algo mais forte que a razão me impele, firme.
Então me lembro de Luciane, um outro dia, e lhe digo:
— Meus dedos querem atravessar o tecido da blusa e tocar tua pele ao vivo, posso?
Ela sorri, esconde o rosto com inocência excitante nunca vista por mim, como se fosse a outra, e diz:
— Tenho vergonha...
Não era um sim nem era um não — mas a manifestação de um pequeno temor e grande desejo ao mesmo tempo. Luciane apertou-me o pulso e fez com que eu sentisse um mamilo pronunci-ado, espetando a palma da minha mão. Então larga meu pulso, suspira, sinto tesão e dúvidas — simultâneas. Devo enfiar meus dedos lúbricos pelo decote ou procurar alternativa mais discreta? Orientar as circunstâncias ou jogar-me de cabeça dentro delas? Devo jogar-me como se eu fosse um jogo ou como se fosse um brinquedo? Enquanto me decido, me questiono. E a palma da mnha mão, em minúsculos movimentos circulares, dança sobre o mamilo excitado, como prato de porcelana girando na pontinha da vareta de um malabarista chinês apaixonado.
Não era um sim nem era um não.
Há duas horas que meu sexo deliciosamente excitado me aponta um caminho como fosse uma seta — mas resolvo não segui-lo. O caminho deve ser longo para que possamos percorrê-lo passo a passo. Step by step. Decido-me deixar minha mão onde está.
No máximo, em todos os sentidos.
— Não será hoje!
Celine Dion continua "talking about love", e Luciane começa a deixar de responder, sua cabeça pende ainda mais e uma coisa chamada ternura se apossa de mim. Ajeitei sobre ela o acolchoado que já nos protegia e fiquei mais duas horas velando seu sono, ouvindo a faixa nove: "Miles To Go (Before I Sleep)”. Velando seu sono e tentando acalmar meus instintos enquanto vasculhava a memória em busca de situações iguais a esta. Não encontrei nenhuma parecida.
Ela dormia criança: bem solta, entregue a si mesma, toda pura, a cabeça repousando gostosa no meu colo inocente, confiante. Como um quadro de Klimt — especialmente o Retrato de Mada Primavesi — Luciane requer demorada contemplação. O tempo foi passando, veloz, e quando meu próprio sono começa de madrugada a derrubar-me sobre ela, me lembro de Kundera. Tento acordá-la, em vão, e há cabelos prisioneiros no meu zíper, indicando-me sonhos que imagino agora ter tido. Levo-a para sua cama, cuidadosamente, carregando-a nos meus braços de amor, como carregasse a mais sustentável das levezas de um ser perfeito — 49,9 kg de gostosura absoluta.
(Não é preciso sentir mais nada.)

Agora, três anos depois, toda noite acordo cedo, madrugando. Alguns chamam de “maldita insônia” esse período de vigília noturna. Mas meu caso é muito diferente: são os Deuses que me acordam toda noite para que eu pense em nome Deles. Então, antes de fechar este capítulo, a divina voz me diz:
“Mesmo à beira do abismo — dançar, dançar, dançar...”
(E se você não gosta de Nietzsche é melhor parar de dançar.)

Da genialidade para a loucura é apenas um passo.
— Dei dois.



Todo jogo tem suas regras.
E o que é a vida se não um jogo?
O maior deles, o melhor — o mais gostoso de ser jogado.
Acontece que as regras da vida não podem ser impunemente quebradas. Forçar a natureza é algo a que jamais me propus, exatamente porque a natureza tem que ser respeitada, ao máximo — eis a regra fundamental. Algumas pessoas, porém, apressadas, quebram as regras da Natureza, supondo com isso criarem atalhos em direção à felicidade. Violentam a ordem natural das coisas. Estúpidas! Não sabem que forçar a natureza é como chutar a bunda de Deus: um grande pecado. E os idiotas que fazem isso ficam depois se pergun-tando por que Deus sempre os despacha para o inferno. Mal sabem os desgraçados que eles mesmos são os responsáveis.

Vou reabrir este capítulo como se reabrisse a garrafa do vinho francês que acabei de buscar. Abro então o Baron D’Arignac, rouge, respiro fundo e ataco minhas lembranças como se fosse um leão. Às vezes você precisa pôr uma pedra enorme no próprio sapato para sentir-se vivo. Quem só pisa em espumas não cria coragens.
Quem só vê o macio não sabe a dor.
Houve um tempo em que tinha um prego no meu sapato. Todo dia eu batia nele com o cabo da escova de lavar roupa. Meia hora depois o desgraçado já furava de novo meu calcanhar, o que me fazia passar o dia inteiro mancando. À noite eu repetia a operação, sem ter nunca ido a um sapateiro. Depois de uns três ou quatro meses e muita dor criei vergonha e comprei um sapato novo, preto, barato, numa loja empoeirada e decadente da Rua Barão Duprat, perto do Mercado Municipal. Foi um verdadeiro alívio. Como se vê, às vezes a gente é muito mais sem-vergonha do que pobre.
— Sofre mais por burrice do que por falta de dinheiro.
Aliás, o ser humano quase nunca é racional.
A burrice é igual para todo mundo, mas a burrice própria é muito pior do que a burrice alheia.
A esperança é um armadilha.
Fatal.

Agora, do jeito que as coisas estão, todo dia é tarde demais...
Por isso farei um intervalo para tomar o sol do Guarujá. Tomar o sol do Guarujá nos dois sentidos, se você me entende.
E espero que Deus te proteja na minha ausência.







Não se case com a Musa.

A maior indelicadeza que se pode cometer contra uma mulher é transformá-la de musa em esposa.
Uma coisa não tem nada a ver com a outra!
Você desperdiça a musa, e depois acaba perdendo a esposa...