15.1.02

Sempre que não estou construindo pirâmides, eu faço amor. Das 24 horas do dia, reservo algumas só para mim. Não são muitas, mas são tantas, tão intensas! Nessas horas, eu faço amor, com toda delicadeza que a expressão comporta. E de uma forma pura, inocente, religiosa. Nessas horas, eu amo. Só isso: amo. Depois, tomo um vinho, rouge, sossegado, o leão que trago no peito repousa, ronrona, me sinto bem. Se você não ama todo dia como eu amo, nem toma os vinhos que eu tomo, o problema não é meu. Só quero que você viva a vida — se é que posso chamar de vida essa tua indecente ausência de amor e liberdade.
E deixe que eu viva a minha — só!
(Cada um na sua.)
Se você não concorda, é melhor fazer outra coisa.

Eu, eu prefiro o cume, o pico, porque aqui não tem fila, não tem ajuntamento, empurra-empurra, confusão. Prefiro o cume porque aqui ninguém me aporrinha, ninguém me pressiona, ninguém me pede autógrafo — nem me enche o saco.
Prefiro o cume, o píncaro, porque é só aqui que eu sei viver.
Nasci para o pináculo.
Para o auge.
Cada um na sua.
Se você não concorda, etc.
Aliás, será que você realmente me entende?

Quando digo “Saltar no belo escuro azul profundo da Vida” — tem gente que pensa que é para baixo!
Ora, eu me refiro a um salto para cima.
O salto mais profundo é o que damos para cima!



Por falar em salto, Fernanda hoje beijou-me os pés. Mil beijos cândidos, lúbricos, a língua dançante feito cobra vermelha entre os meus dedos, todos explodindo de alegria. Agora sei o que sentia Jesus quando chegava a prometer até o céu às mulheres que Lhe beijavam os pés. Agora eu sei! Jesus, por que você demorou tanto tempo para mostrar-me essa menina Marta e Suas coisas?
Mas Deus agora me veio de ouro em fernanda pessoa. Assim como Zorba, o grego, vivo no paraíso. Mas se o paraíso vier só depois da minha morte, não me interessa nem um pouquinho. Como disse Zorba, o Buda, cada um procura (ou constrói) seu próprio paraíso: alguns transformam seu paraíso numa montanha de tonéis de vinho; outros, em igreja evangélica; outros ainda, em saldo bancário. Nem me refiro a paraíso fiscal. Eu, como poeta que sou, tenho assim meu paraíso: uma bela tarde ensolarada, brisa delicada me tocando as duas faces, gostosuras preenchendo meus olhares, e ao meu lado um amor apaixonado que eu agora esteja amando.
E mais duas ou três mulheres-roses beijando-me os pés.
Só isso...
É assim meu paraíso: entre vinhos e mulheres, entre flores e estrelas, delícias, liberdades.

E ainda que a barriga ronque, me visto sempre de cetim. Então minha barriga canta, meu corpo dança — e a fome se vai. Parece que Deus abençoa muito mais a minha estética do que o saldo devedor. Por isso estou lançando hoje uma “Campanha de Preservação da Natureza”.
Da minha natureza.
— Nunca mais forçarei Minha Própria Natureza!
Não posso sufocar esse delicioso grito que meu coração quer dar agora.

Se a gente não se cuida, o amor acaba em casamento.
É fatal.
“Acaba” — nos dois principais sentidos do verbo acabar.
Eis uma curiosidade: a palavra “conjugal” tem a mesma raiz etimológica de “canga”, “cangalha”, “jugo” e “jugular”...


Se você respeita o monstro portando um revólver, por que não respeita o poeta portando uma flor? Se você respeita o general, o juiz, o patrão — por que não respeita igualmente o irmão que sorri?


Falemos um pouco sobre amor e amizade.

As relações de amizade são mais puras: quando perdemos o amigo sentimos falta, mas quando perdemos um amor, quase sempre sentimos alívio. A menos que seja uma relação neurótica de “amor”. Uma relação de amizade vai sendo polida, e com o tempo fica mais sólida, brilha mais. A de amor, com o tempo, fica mais frágil, escurece. A amizade respeita as diferenças, mas o amor pretende apagá-las. Na amizade não há ciúmes. Se um amigo nos diz “vou a Paris amanhã”, logo respondemos: “Que bom. Seja feliz, boa viagem, mande um postal...” Mas se é o marido que diz “vou a Paris”, a esposa reage: “E eu? Continuo aqui, lavando louça?” Até chega a pensar: “Tomara que o desgraçado se afogue no Tâmisa!”.
E que volte logo. “Embalsamado...”
A idiota nem sabe que em Paris só se pode afogar no Sena...
Mas o Amor é uma coisa; e outra — muito diferente — é isso que os medíocres chamam de amor.
O verdadeiro amor pressupõe liberdade. Se esta não existe numa relação, ou é esmagada pelo ciúme ou pelo medo, chame-se tal relação por qualquer outro nome, menos de amor. A amizade nunca impõe restrições aos atos do outro, nem constrói absurdas barreiras para impedir o crescimento do ser amado.
Assim, o amor.
Na verdade o amor só pode acontecer em sua plenitude numa relação de amizade.
Já pensou passar a vida toda com a mesma pessoa?
Assinaria você um documento comprometendo-se a ter só um amigo pelo resto da vida? Almoçar só com ele, jantar só com ele, ir ao clube, teatro, cinema, praia — só com ele! Viajar só com ele, e só se ele permitir! Dormir ao lado dele todo dia! Conversar sobre os mesmos assuntos, ver os mesmos programas de tv, entediar-se mutu-amente — todo dia — só com ele...
Ah... a Amizade com certeza não resistiria!
Então, por que você acha que o Amor é capaz de resistir?


Nunca é tarde demais para tornar-se um rebelede.






Planos.

Na minha vida, sempre que faço um plano, eu gosto mesmo é de incliná-lo um pouquinho e deslizar por sobre ele.
Até a borda...























— E então saltar!






Escravo por um dia.

Qualquer dia desses vou fingir que sou normal. Vou comprar um despertadorzinho de plástico, regular o desgraçado para que toque às seis e quinze da manhã, e acordar sobressaltado. Meu coração vai bater com força nos meus desejos. Vou virar-me de lado, fazer de conta que reclamo da vida, mostrar-me sonolento, bocejar — e pular da cama como se fosse um autômato desesperado e sem graça.
(Tirarei até remela dos olhos, que é pra dar um tom...)
Vou fazer tudo com pressa: escova, pasta, banho, pente, sabão, creme, cansaço. Vestir-me, tomar café, abrir a porta, fechar, sofrer, sair, trancar, girar, abrir, fechar, ferir, digitar, sorrir — tudo correndo.
Terei hoje uma missão extraordinária:
— Foder-me!
Desperdiçar minha vida.
Prostituir-me em troca de um salário ridículo.
(Todo salário — se não for fantástico — é ridículo).
Vou trocar um pouco de vida por um pouco de morte.
E à noite, quando chegar em casa, vou ligar a tv pra ver o que perdi. Vou aguardar o jantarzinho que não vem. Vou até esquecer-me de beijar esse amor que já nem tenho. Dizer que não posso brincar com o filho imaginário, porque estou sem ânimo...
Vou sentir-me um escravo.
Escravo e estúpido. Porque, antes de ser normal, antes de bater cartão de ponto, antes de escolher um babaca como chefe, antes de se casar, antes de assassinar a própria liberdade — antes de tudo isso, você tem que ser duas coisas, simultaneamente: Estúpido e escravo.

Felizmente, minha missão extraordinária vai durar só um dia.
— Só hoje!
(Mas já pensou se a tua fosse para sempre?)










Todo sonho tem um preço.
E é melhor pagá-lo à vista do que não tê-lo.

A todo instante eu vivo um momento único e ultrapasso um ponto de não-retorno. Vejo agora uma virgem deitada de bruços em minha cama, sem blusa, os seios parecem frutas acariciando o lençol branco de algodão. Ela ainda está de calça preta, sandálias de amar-rar. Tem rosto que me lembra Edna, aquela. Há incenso indiano queimando no chão, espetado numa laranja, e a música de Yanni, gravada no Taj Mahal, preenche tudo aqui de magia, de agora e de amor. Vou levar-lhe o suco e depois me safar: virgem é um perigo! E me lembro do melhor presente que já ganhei, dado pela inesquecível Edna. Inesquecível por um K2 de razões, mas principalmente porque Edna Mary Rangel teve um papel determinante na minha vida. Tanto, que ela seria a mãe de Maria Paula, filha que talvez teríamos, fruto da paixão desesperante. Nós nos amávamos, sim, profundamente, mas também tínhamos nossas inquietações particulares...
Tem presente que é só uma quinquilharia, uma bugiganga. Mas tem presente que pode mudar o futuro de quem o recebe. O que Edna me deu aquele dia era uma simples folha de papel, com o que disseram sobre mim:
“Todas as aptidões específicas são bastante superiores. Personalidade bem formada. Boa linha de conduta. Metas bem definidas, determinando uma ação bem programada. Atitudes ponderadas e sensatas, com sinais claros de um bom senso de responsabilidade. Disposição para aceitar idéias novas. Espírito aberto e progressista. Desejo de alcançar uma boa expansão pessoal. Interesses intelectuais bem orientados. Vivacidade mental. É bastante teórico, mas nem por isso deixa de lado os aspectos práticos da vida. É por isso muito objetivo no seu raciocínio. Faz um curso de Filosofia Pura, o que muito o ajuda a se desenvolver nesse plano. Sua personalidade, muito bem formada, também lhe permite condições para se realizar no seu trabalho, aproveitando seu potencial em boa amplitude. Os prognósticos sobre o seu desempenho estão completamente a seu favor. Trata-se de um ótimo candidato.”

Este o resultado do exame psicológico 28.047, quando lutei por uma absurda vaga de louco na Clínica Protin. Foi assinado pela Dra. Camille Haze, hoje psiquiatra em Paris. Eu tinha dezenove anos e esse relatório, esse presente que Edna me deu mudou a minha vida. Definitivamente. Mudou o rumo do meu futuro e também do meu passado. Aquele menino marxista, tímido, precisava de alguém que lhe mostrasse o tamanho, o enorme tamanho do Demônio intelectual que trazia no peito. E se você pensa que o Demônio todo ainda me habita, engana-se: é apenas Sua alma que hoje mora no meu coração. Do corpo Dele já não preciso mais: uso agora o próprio meu.
(Como vêem, minha loucura vem de longe.)
Aliás, não tenho apenas uma loucura.
Para que nossa vida fique muito mais saudável, em todos os sentidos, o ideal é operarmos com duas loucuras, ambas não excludentes, mutuamente complementares e necessariamente bri-lhantes.

A Loucura é como a Liberdade:
Só lhe damos valor quando a perdemos.

Tem gente que realiza todos os seus sonhos — mas só sonha o sonho errado!



A faca de Abraão.

Março 1999. Noite alta. Releio a belíssima biografia de Joyce, escrita por Richard Ellmann. Paritosh, deitado no chão, entretido com a história de Abraão puxando a faca para seu filho Isaac, contada de várias formas por Kierkegaard. Aliás, o Alcorão diz que foi Ismael, e não Isaac, o filho que Abraão levou à montanha de Morija.
Lembro-me do grande amor que um dia tive, e que morreu. “Quase todos morrem...” — Vou à cozinha pensando em tomar um vinho, porém trago dois copos de leite.
Ofereço-lhe um, como se fosse uma flor.
— Paritosh, vou colocar um poema teu no Solidão a Mil?
Ele interrompe a leitura, atencioso para comigo.
— Qual?
— Aquele do amor que morre e do amor que acaba.
— Ah, mas já o escrevi há tanto tempo. Fosse hoje mudaria muita coisa. Ainda não te contei, mas estou escrevendo um ensaio com o seguinte tema: só amamos quem satisfaz algumas das nossas expectativas. O amor viceja na esperança: finda esta, morto aquele.
— Acha que todo amor termina em morte ou sumiço?
— Sim, mas é melhor que seja por sumiço. Amor que morre é um horror, nunca morre de vez. Vai morrendo pouco a pouco: é um saco. Vai minguando, definhando, secando. Fica no meio da gente, ali no meio da sala, como visita indesejável, uma doença incurável, um catombinho. Um sintoma.
Começo a rir (seriamente) do que diz Paritosh.
“Tenho que abrir esta obra, fazer eco com ela.”
Ele continua, mais existencialista que Sartre.
— Esse amor doente fica ali, na relação, meio desengonçado, perambulando, tossindo, enrolado num cobertorzinho. E você sabe qual o único aliado desse pobre diabo? O tédio. Só o tédio é que dá uma espécie de sobrevida ao amor que está morrendo.
— Mas o tédio não vem só depois do amor morrer?
— Nada disso, meu caro: o tédio é o principal assistente do amor que agoniza. O tédio é o elemento central que tenta inutilmente prolongar a vida do desgraçado que falece.
— Bela teoria — tenho que concordar.
Procuro definir em silêncio, como um professor de Filosofia e você não soubesse o que significa “teoria”. Uma teoria é um conjunto de conhecimentos não muito ingênuos, sistematizados e com alguma credibilidade, que se propõem explicar, analisar, interpretar, ou unificar um determinado universo de fenômenos ou de acontecimentos. Fico pensando no existencialismo e nas “Pala-vras” de Sartre (que eu já li quatro vezes) e me lembro de Simone, dizendo que todo escritor original, enquanto ainda vivo, tem que ser escandaloso. Quando volto a mim, em segundos, Paritosh ainda falava:
— Mas não é só o tédio que o assiste. Vem um monte de a-companhantes, todos de extremo mau gosto. Vêm a monotonia, a tv, o cansaço, o desespero — todos trazendo pílulas de ânimo para o doente. Uma verdadeira romaria de aleijados tentando salvar um lazarento que apodrece. Mas de nada adianta. Depois que o amor fica precisando desse tipo de ajuda, é o fim.
— Ele então se acaba, morre?
— Entra em fase terminal — vai pra UTI .
(Será que deveria existir um “Hospital das Relações”?)
— Sobrevive?
— Morre. Nenhum amor que entra na UTI da relação sai vivo de lá. Às vezes demora anos pra morrer.
— E que medida devemos tomar?
— Chamar a Razão. Só a inteligência é capaz de transformar o moribundo em cadáver. Aí nada mais resta a fazer — como eu já disse naquele poema. Aliás, algo me ocorre agora: você já percebeu que os burros não se separam...
(Intimamente, tenho que aplaudir.)
Pausa.
Ele retorna com seu Soren à montanha de Morija, acho, eu me volto para Joyce e leio o que disse à lady Gregory, em 1904:
"Agora vou formar minha própria lenda e apegar-me a ela".
Eu também — penso.
E penso em Abraão. Este homem, que ouvia vozes e chegava até a discutir com Deus, está na origem do judaísmo, do islamismo e do cristianismo. Não me lembro do nome da escrava egípcia com quem ele teve seu primogênito Ismael.
Que falta faz uma Bíblia numa hora dessas!
Só sei que Sara permitiu, mas depois ficou com ciúmes.
Como vemos, o ciúme estraga até casamento mitológico.

Bebo o leite e vou pra cama, amar Ulisses nos meus sonhos, sem me esquecer do que Joyce escreveu a respeito dele: "Se o Ulisses não serve para se ler, a vida não serve para se viver".
(Acordei de madrugada, supondo que Paritosh iria amanhecer na sala, abraçado a Kierkegaard. Mas ele dormia espalhado em meio aos fragmentos de um enorme Discurso Amoroso.)
É a vida.

O poeta, o artista, o filósofo, eu, você — nossa função é saltar barreiras, subir à tona, transpor obstáculos, desbravar caminhos, quebrar os ícones da moral, defender a liberdade, amar demais, criar conceitos, mudar o mundo, viver à mil. O poeta, o artista, o filósofo maluco, o cientista, o escritor, o anarquista, o libertário; nós todos que já deixamos o rebanho e saltamos profundo — nós somos a vanguarda da História. Somos loucos porque não podemos ser outra coisa. Em nós, razão e loucura disputam primazias entre si, entrelaçadas. A razão vence todos os embates, porém, num gesto lindo de grandeza e gostosura, cede sempre à Loucura o troféu da liberdade.
Assim Caminha a Humanidade.

Até hoje não se tem notícia de que alguém que bata cartão de ponto e produza uma obra-prima — ao mesmo tempo. Por isso, não vou mais ganhar a vida trocando-a por merda. A partir de agora, sem contabilidade, sem ponteiros, sem pressões!

A cura está contida na Loucura.
Se você encontrar uma terá a Outra.

Pois, é.
Qualquer coisa que digo pode estar na primeira página, porque tudo tem alguma verdade que lhe sustenta. Até aquilo que nego pode às vezes ser verdade. E quando nego, também o faço porque creio. Assim como afirmo por amor, não nego com segundas intenções. Mesmo quando falo de mim penso no outro, no que representa para si — e para aquele que pensa ser. Quando digo "representa" não penso só em significância, mas também em teatro, jogo, simulação. Nem tudo o que significa diz alguma coisa — nos iludimos às vezes com aquilo que é real. A fala não se confunde com a voz, pois aquela é mais profunda, tem mais cor, peso, volume, sentido.
Não dá pra se enforcar com lacinhos de cordas vocais. Nem todo nó na garganta pode ser desatado. Melhor engoli-lo do jeito que está — é muito melhor digerir o que estiver sufocando.
Quanto ao Ulisses, acho que “não serve para ler”, pois ainda não passei da página cem. Considero a biografia de Joyce citada acima muito melhor do que qualquer de seus livros.
Penso em Nietzsche: “Não existem verdades definitivas”. O que temos são interpretações sobre a realidade, determinadas pelo ponto de vista e pela capacidade intelectual de quem as propõe.
E me lembro.

O vinho é feito de agulhas, meu copo um dedal. Costuro à mão pedaços da infância — com eles faço um lençol. Peço à Lorenna que me cante cantigas de natal da Idade Média, e ouço a Singer rangendo seus pedais no meu CD. Minha mãe também costurava com linhas de cor, pregava remendos bonitos, trocava meus botões, lavava roupas de amor. Vejo até sabão de cinzas no fogo forte que tanto me arde agora no rio do peito, espumas de lembranças incendiadas.
— Edson?!...
— Ahn?
— Nada.
— Edson?!...
— Ahn?
— Nada.
De tempos em tempos eles me chamavam, e eu “— ahn?”. Depois da terceira pergunta, fiquei esperto. E aí veio a quarta vez:
— Edson?!...
(Silêncio profundo.)
— Edson?! Tá dormindo?...
(Silêncio mais profundo ainda.)
Segurei a respiração, não respondi, abri as orelhas como duas enormes antenas parabólicas, e fiquei aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Meu coração barulhento fazia "tum tum, tum tum tum, tum tum tum, tum tum tum". De novo, como certificassem que eu estava mesmo dormindo:
— Edson?!?!...
(Silêncio lunar.)
Então começaram. Em mim um misto de mistério e de ciúmes. Eu tinha sete anos e o sexo me era uma excitante incógnita. Com desesperada curiosidade liguei minhas antenas e fiquei imóvel para que as palhas do colchão não denunciassem a vigília. Duas pessoas faziam amor no escurinho de um rancho de sapé, no sul de um estado que nem mais existe, mas que era o Maranhão — e eu fingia dormir numa caminha bamba de taquara verde, abraçado aos meus delírios.
Naquela noite sonhei muito, tantas coisas que nem lembro. O mistério do sexo era maior que o meu. Para mim o sexo sempre foi fascinante — para mim e para Freud, claro. Na madrugada caí da cama, a única vez que devo ter caído da cama em toda minha vida, exceto aquela outra em Caracas, como já te disse. Caí no chão meio duro de terra batida, envergonhado, ainda que ninguém tenha visto a cena da queda. Trepei na cama de novo, em silêncio. E depois dormi, um pouco angustiado, sentindo-me traído naquela noite perdida no meio do mato, no sul de um estado que nem mais existe.

Já dormi em colchãozinho de palha, com um pau de lenha por baixo, fazendo as vezes de travesseiro. Experiência poética que você não terá jamais. Porque, antes de ser trágica, era poética aquela minha experiência. Não me incomodavam as palhas nem o barulho que faziam quando se roçavam entre si, como se loucas por mim, como se me aplaudissem. Eu era tão pequeno, mas tão pequeno, que aquilo não era uma cama: —era o meu berço.
(Esplêndido!)
Devemos entrar em Freud através de Reich — fico pensando. Um pouco antes eu disse “pedais no meu CD”. Que coisa mais antiga — alguns dirão. Que tal “teclas do meu DVD”? Talvez fonógrafo, toca-discos, ou até radinho de pilha. Mas a língua se enrolaria, e eu quero lubrificar o texto com a sonoridade que as palavras têm. Entrar em Freud através de Reich — e sair dele através de Jung. Primeiro, Luiz e Vitalina; depois, Luiz e Maria. Afinal, Luiz e Iracy. Agora, Eu e Mim. Pouco a pouco, muito a muito, fui chegando.
Cheguei numa sucessão gloriosa de luz, vida, pureza e açúcar.
Então aproveite-me, tente-me, prove-me. Sou filho do que há de melhor — e pai do que nunca virá. De manhã, não fico ruminando o luar que já se foi. Antes do primeiro gole de café, limpo o gostinho madrugante que minha boca possa ainda estar sentindo. Não me atenho a coisas que passaram, não me ligo a cadáveres de nada, o que morre não me encanta, eu me ocupo só do agora.
Jamais serei um desenterrador de defuntos.
Eu amo o agora — Só.
Portanto, “dá-me mais um tempo, Demônio: ainda não caiu o último grão do meu relógio de areia”. Busque-me mais tarde, volte depois, porque agora estou amando como Deus, ainda conquistando minha amada imortal. Não me interrompa esse último ato, a taça de cristal da minha vida transborda de amor e prazer. Quem sorve esse néctar derramado é a escancarada boca gulosa da liberdade absoluta. Para compor esse quadro com harmonia, cadência e sorriso, você tem que dançar comigo a dança livre da alegria pura.

A vida é uma festa — em todos os sentidos. Chega de médio, chega de medo, de escuro, de pouco, de não. Viva a cor e a coragem! Seus sonhos só se realizam quando você declara independência.

Por falar nisso.
Castelli, meu grande “amigo-da-onça”, sugeriu-me um dia:
— Se gosta tanto de coisas novas, Edson, case-se, tenha um ou dois filhos — e você viverá uma experiência nova...
Ao que respondi, lamentando tal conselho:
— Eu amo o novo, mas somente aquele novo que não suprime a possibilidade de um novo que lhe suceda. Se um novo por acaso traz consigo o germe que tenta torná-lo perpétuo, e de algum modo impõe certas exclusividades não naturais, ainda que delicadas e ainda que passageiras, fujo dele, como Deus foge da cruz. Não posso — jamais! — amar o novo que vai me impedir novos amores. Por que razão fecharia uma situação de futuro? Como poderia eu amar uma coisa que logo vai acabar atrapalhando meu amor por todas as outras?
Nesse caso, trocar o todo pela parte será uma impressionante demonstração de burrice!
Recuso-me a ser medíocre.
Minha descendência não está assegurada. Aliás, ao contrário: acabo-me em mim — para sempre. Não continuo, não me prolongo, não me estico, nem me desdobro: quando me for, irei inteiro — todo. Não deixarei uma gota sequer do meu sangue perdida por aí. De mim nada ficará, exceto as palavras que falei, os livros que escrevi, e todos os amigos e amores que amei — a minha historia e minhas histórias: só isso. Filhos, netos, bisnetos: nunca os terei. Nunca.
Jamais serei proletário!
— Felizmente.
Tenho que escolher minhas próprias finalidades.
(Fico sonhando.)
E são sempre coloridos os meus sonhos. Mesmo quando sonho em preto-e-branco, vem Van Gogh e os transforma. Às vezes, vem Cézane, outras vezes, correndo desde Papeete, desde a Pata-gônia, vem aqui o Paul Gauguin me socorrer. Pinta as mulheres minhas como se suas, leva algumas com ele, embora.
E me lança olhares perguntantes ao sair.
Respondo sempre: — Pourquoi pas?!
Dali também costuma vir aqui. É o mais irreverente: às vezes, as ama antes mesmo de pintá-las, outras vezes nem lhes deixa secar direito e se lambuza em tinta fresca. Gauguin é deles o mais louco. Só Van Gogh é mais contido, mas sempre ao terminar beija a orelha delas. Já Picasso é cuidadoso: as mais feias ele apaga e diz apenas:
— Essas não têm conserto, Edson.
(Não era Picasso que usava os pincéis uma só vez, “como se fossem mulheres”? Machista filho-da-puta...)
Algumas das "pintadas" se misturam às coloridas de verdade, e depois ficam rondando pela casa quando me acordo. Mas todas são originais, e amo-as até que mais não possa.
Ou até que a casca caia.
Eu também só escrevo a cores — vocês não vêem?
Se não as vêem — desistam.
Em terra de rei quem tem um olho só é cego!
Ou escravo...

Quando estou no pico e quero subir mais, é Paritosh quem me ajuda ir além. E se algum dia eu me sentir no fundo do poço, será ele também que vai pisar-me nos ombros com firmeza e me dizer:
“Descuidou-se, meu caro. Por isso foda-se!”
— Então ele não te ajudaria numa emergência?!
— Acho que não: Paritosh só aparece quando estou bem.
Por falar nele, está na Bíblia: Jesus gostava muito de festas.
Certo dia o Mestre pediu ao discípulo que convidasse alguns de seus amigos para jantar. Ao primeiro convite, o amigo respondeu: Hoje não é possível, tenho um compromisso: minha filha vai se casar e preciso conversar com o futuro genro. O segundo amigo disse: Peça desculpas ao mestre porque hoje não posso ir. Aluguei uma casa, espero o inquilino que virá pagar-me o aluguel. O outro tam-bém disse: Desculpas ao Mestre, “tenho compromisso, dinheiros a receber, alguém vai me trazer um cheque do Bradesco e tenho que ir depositá-lo no caixa eletrônico.” Ao quarto convite o amigo mandou dizer que estava fazendo “a contabilidade das empresas, o contador viria mais tarde”, coisas assim. O quinto convidado disse que havia um programa na TV a respeito da globalização, que lhe perdoasse o Mestre, outro dia, quem sabe. O último convidado também deu uma desculpa esfarrapada, problemas na família, nos negócios, etc.
O discípulo voltou e fez um relato das razões furadas que os amigos alegaram para que nenhum deles viesse jantar.
Então Jesus disse:
— Negociantes nunca vão entrar na casa do meu pai.
Concordo.
“Esses filhos-da-puta jamais entrarão no Reino de Deus.”
Então Jesus também disse:
— Vá até o boteco da esquina e convide o primeiro bêbado a-legre que você encontrar, aquele cujo copo acabou de ser levantado do balcão e ainda nem lhe tocou a boca, esse você o convida — esse virá. Aquele que se esqueceu de ir pra casa, e cuja esposa o aguarda na porta, esse você o convida — esse virá. Vá também à praia e convide aqueles jovens de cabeça que estão fazendo amor e loucuras na areia — esses virão...
“Convide os que são livres: esses entrarão no Reino de Deus.”
— Negociantes: jamais!
Jesus chegou a chutar uma canequinha de lata que havia caído da mesa e voltou a dizer: "Seus putos!" E antes de dormir ainda fez questão de resmungar, virando-se de lado e puxando o cobertor:
— Vocês ainda não viram nada, seus putos!

Negociante é aquele que nega o ócio.
A etimologia diz muito sobre o significado da palavra.

Nessa noite Jesus sonhou com seu Pai.
Depois te conto.
Ou você pode ver como foi no livro “The Master of Jesus”. Nesse livro, uma bela obra teológica lúdica, editada na India, Paritosh faz algumas afirmações irônicas, e diz que ainda vai fundar uma Igreja. O nome dela será Assembléia de Deuses!
Mas, em verdade, em verdade, eu vos digo:
Há dois Jesus: o teológico e o histórico.
O Jesus da Teologia é Deus — e sobre Ele eu não discuto.
Já o Jesus histórico, Esse era um porra-louca. Amava mulheres e homens, era livre, tomava vinho, dançava, brincava, coçava o saco, sorria sempre, dormia pelado, jamais trabalhou...
Ambos merecem meu respeito.
— Só que eu gosto muito mais do Porra-Louca!

Faço um intervalo para ver Bosch. Se você ainda não conhece Hyeronimus Bosch não vai entender Salvador Dali.

E me lembro que sou amigo até das feias, mas das belas sou mais. Quando olho essa bela mulher com olhos de amigo sinto por cima dos ombros o amante à espera de uma chance. À primeira vacilada o amante que mora em mim ataca. Com delicadeza, mas ataca. Por isso, menina, não ligue quando pouso minhas mãos em tuas coxas: não quero mais nada. Mas o amante em mim te observa, te foca. O amante que sou te lambe com a língua do sonho e te vê com olhos da alma. E aguarda o momento, o mágico momento em que, felino, vai tocar o teu corpo com poesia e tesão.
E depois pintá-lo como Dali em noite de gala.
Minha mãe e meu pai, cada um a seu modo e de um jeito sin-cero e competente, deram-me o que tenho de mais valioso: a Vida. A forma de geri-la, contudo, disseram-me eles, seria de minha inteira responsabilidade. Porque só eu posso ser o gerente da minha vida, “o capitão da minha alma”, o general do meu mundo.
Sou eu meu próprio diretor!
O único autor do meu script.
O desbravador exclusivo dos caminhos que percorro.

Não sou como Joaquim, meu avô paterno, que era carroceiro por profissão. Não o conheci porque ficou louco bem antes de mim. Todos os dias ele ia à estação ferroviária com a esperança de fazer carreto, um servicinho qualquer que salvasse o leite das crianças. E todo dia — era sagrado — trazia alguma coisa para casa, embrulhada geralmente num paninho branco de saco de açúcar. O coitado era tão humilde que não posso me lembrar dele sem que chore.
Era assim: toda segunda-feira ele trazia uma latinha de massa de tomate Elefante; na terça, um pacotinho de macarrão; na quarta, cem gramas de queijo ralado; na quinta, quilo e meio de tomates bem maduros; na sexta, lembrancinha para os filhos, doce que seja, umas balas; no sábado, a garrafa de vinho tinto, daqueles de barril — e estava então completa a tão querida macarronada do domingo, ao lado dos filhos e da mulher que ele amava, Maria.
Era a sua maior alegria...
Depois, anos mais tarde, doente, chorando, tremendo de frio, ele foi abandonado pelos próprios irmãos na porta de um hospício em ruínas, na cidade de Franco da Rocha, SP.
O nome dele era Joaquim dos Santos.
Bebia, sim, mas não era um pau-d’água.
E talvez o maior erro da sua vida foi ter permitido que outros tomassem decisões em seu nome.
— Enlouqueceu do lado errado.