O Cadáver de um Palhaço.
Quando se proíbe alguém de sentir o perfume de uma flor, perde o sentido o alguém, o perfume e a flor. A paixão se enfraquece, a história fica triste — e a relação se desfaz completamente.
É o fim.
— Quem ama não proíbe nunca!
O ciúme é a confissão de um sentimento de inferioridade.
Se você tem, não negue — mas procure curar-se.
O que digo é sempre fundamental. Então, por que considerá-lo de outro modo? Ainda que você não goste do que escrevo, acredite em mim. Mas isso não tem hoje para mim a mínima importância, pois não escrevo para ser famoso, nem falo para ser lido. Eu falo é por ser amado e escrevo porque gostoso. Minha literatura é feita de excessos — eu sei — mas é sincera, tem cadência, gostosura, suavidade, juventude, pulsação.
Contudo, até mesmo a sinceridade há limites.
Não se pode ser sincero além de um ponto.
Como eu ia dizendo:
— Não espere a próxima primavera para sentir o perfume de todas as flores.
Amanhã pode ser tarde demais.
A vida é um milagre — e não vou agora desperdiçar o meu!
As coisas que quero que aconteçam não virão jamais acontecer aqui, longe dos seus próprios lugares. Eu é que tenho que mover-me, urgentemente, para todos os lados — inclusive o de dentro.
Acabo de fazer uma promessa: Vou sobreviver a todos os meus amores. Naufragar por causa deles — jamais! Posso até me afundar um dia, quem sabe, mas ao voltar à tona trago nos dentes o punhal do pirata. Afundo-me em nome da liberdade, mas trago depois, enrolada na língua, a pérola pura, pois fui capaz de morder com doçura a ostra hesitante. O aventureiro que habita meu corpo pode até simular um naufrágio em teu nome, meu amor.
— Mas jamais quererei te salvar...
Releio o parágrafo acima, e descubro que sou ainda capaz de afundar-me — mas nunca apenas por solidariedade ao teu naufrágio. Posso até afundar-me de novo por altíssimas razões. Mas quando subo à tona trago liberto nos dentes o punhal de porcelana do pirata que amei. Sou capaz de afundar-me em busca de moedas de ouro, um certo tesouro no galeão espanhol que soçobrou no final do século XV. Afundo-me leve e trago outra vez enrolada na língua a pérola pura, pois lambi com doçura a ostra existente.
Isso me eleva: se afundo-me em mim, só posso subir.
E isso me enleva.
Lembro agora de coisas antigas como se em silêncio as vivesse outra vez. Aquela imagem de Dora, recortada em forma de palavras contra o escuro que meu peito projetava lá fora. “Se eu morrer, ela fica perdida no mundo, mas se ela morrer eu me liberto”. Por isso agora fico pensando: até que ponto eu mesmo (meu inconsciente) não a levou às tentativas de suicídio (embora, dentre as quatro ou cinco, duas apenas simuladas)? Se ela significava naquele momento a morte da minha vida; se ela estrangulava com eficiência a minha liberdade — e liberdade sempre foi tudo para mim — então: que morresse a desgraçada! Mesmo que conscientemente eu a amasse de verdade, meu inconsciente sabia que ela era um estorvo enorme no caminho da salvação. Eu havia passado cerca de vinte e oito anos lutando desesperadamente por liberdade (contra o pai, a escola, a moral, o sistema, o regime, a igreja, o partido, a burrice etc.) e agora, quando eu estava à porta da beira do abismo da liberdade, me aparece alguém com uma tranca horrorosa na mão. Uma fria corrente de aço com cadeado de ferro, e uma algema terrível no dedo anular.
Uma tranca de ciúmes e um cadeado de preconceitos!
Claro que meu inconsciente iria mesmo querer a morte dela.
É duro admitir isso agora, mas... é a vida!
Do que não presta, me esqueço, sempre. E se minha memória, que sabe das coisas, guarda um fato — por que iria eu jogá-lo fora? Amo só o que acontece e sempre me apaixono pelo ato em si. Sou cúmplice da realidade. Depois de quatro dias falando comigo mesmo perco a razão, e perco-a de forma profunda, como fosse perder a vida — só para buscá-la outra vez com amor não sei onde.
E com a certeza absoluta de que ela volta para mim — outra vez. Falo de mim como se de você.
E fico de novo pensando.
Que.
São cinco as instâncias principais que nos sufocam. Em português, começam com a letra P: os pais, o padre (ou pastor), os professores, a polícia, e o patrão. Se você não se livrar de todos eles — e da sua influência sufocante — jamais será feliz.
(Seria muita coincidência se teu nome começasse com p.)
Minha ideologia certas vezes reflete a tua, não porque iguais, mas porque você supõe viver num espelho. Nem todo espelho reflete a imagem que lhe damos: alguns a engolem como um fogo selvagem, vorazes, só para amá-la escondido e depois refleti-la no fundo do avesso mais fundo de si. Embora não saibamos o que pensa a imagem quando reflete a si mesma, devemos preferir as reflexões do filósofo às reflexões do espelho. Por isso é que às vezes me encontro cego.
Mas você não se acha cego.
Pois é...
Sabe aqueles dias em que teu peito parece uma Sibéria? Você olha no espelho da vida, olha fundo, e não vê um ser humano: — vê um palhaço. Nesses dias você tem que reagir, porque, se não reagir imediatamente, logo logo vai olhar no espelho da vida outra vez e terá uma surpresa horrorosa:
— Verá o cadáver de um palhaço!
Não falo isso pra te assustar — quem sou eu pra me ter medo? Sou bom, amável, e não seria capaz de meter medo nem mesmo a mim. Porque o medo é a mais baixa de todas as paixões humanas. Só a imaginação pressiona, de forma gostosa e radical, a transformação da realidade. Sem fantasia e coragem não se muda o cotidiano.
Meu maior defeito é ser bom demais.
Sempre fui amoroso: quando à noite voltava da escola eu trazia sorvete de abacate Frasson para minhas irmãs. E, fosse suficiente o dinheiro, a surpresa poderia ser chocolate Diamante Negro.
Que belo gesto de amor!
— Quem sou eu? — você pode perguntar.
Sou um poeta, um escritor de idéias, bem-sucedido mas ainda não famoso. Escritor de idéias libertárias, eis o que sou. Um trapezista louco e cheio de paixão dando um triplo salto vital no escuro do circo chamado vida, sem redes de proteção. Porque sempre que ouço a voz de Deus dizendo-me “Salte!” — eu salto.
Começo a ouvi-la de novo, insistente.
Eu perdi a virgindade, mas não perdi a inocência: ainda há um menino escondido no meu peito. Sorrindo. E a voz de Deus que ouço vem de Mim. Meu coração é que se abre todo, como fosse uma boca — e me conta coisas, segredos, me conta quase tudo.
A voz de Deus me conta histórias, me acalenta, faz ninar.
E grita comigo às vezes — que nem agora que grita salte!
Insisto:
Só quem salta inteiro no belo escuro azul profundo da vida é que pode viver e brilhar de verdade.
E você — tem saltado muito? Como vão aqueles teus antigos delírios voadores? Como estão tuas delícias, teus amigos, teus amo-res? E os teus brilhos, teus laços e rancores?
— Como vão tuas paixões e tuas dores?
Ah, você só quer saber das minhas? Deveríamos fazer uma troca, não delas, propriamente — as delícias e as misérias — mas do seu relato apenas. Sei que é difícil pra você abrir o peito assim, à faca, e mostrar-se inteiramente — é muito difícil. Dói, eu sei. Mas o gostoso nesse tipo de dor é exatamente isso: Doer em êxtase.
Você nem imagina...
(E se você entende — é melhor saltar.)
Se eu não levasse essa vida louca que levo, sobre o que então escreveria? Eu escrevo, você se lê. Por que não invertemos os papéis? Eu me mudo em leitor e você fala que escreve. Ah, você só quer me ler? Quer saber o que tenho pra dizer? Saber dos amores que já tive — e gozar com minha boca digital e minha história, é isso?
Você não vai ficar satisfeito...
Ou você, no fundo, só quer saber das maldades que eu já fiz? Você é apenas um leitor, ou fiscal do meu prazer? Leitor? Ah, bom. Mas pretende que eu fale dos pecados que cometo em nome de Deus? Quer saber as razões pelas quais matei a Leprosa — se é que existem. Acho que você quer me ver confessando as sujeiras que ainda nem fiz. Você pensa: “será que vou encontrar um outro cadáver fresco, coberto com jornal de ontem, na próxima linha? Será que o safado vai confessar talvez um assalto no capítulo dois?”
Acho que você não vai ficar satisfeito. Se for só por isso que você me lê, é melhor parar. É melhor ler algo de Albert Camus, talvez “O Mito de Sísifo”. Pois Galileu também teve que mentir.
A Leprosa a que me refiro neste livro foi a mais inesquecível namorada que já tive. Os orgasmos ruins que sofri ao lado dela foram pouco a pouco enfraquecendo minha alma de forma impressionante. Da gloriosa condição de touro selvagem recém despertado, passei a ser um boi manso amarrado no pasto. Amarrado no pasto, e comendo capim. Engordando — e só aguardando a hora da morte. Meu peito virou desastre, o desânimo tomou conta de mim, a criatividade sumiu, a vida perdeu a graça, o mundo perdeu a cor, a alegria virou tristeza, o tédio era constante, me tornei um abismo.
Ninguém sai ileso de um casamento tradicional.
Logo mais falarei a respeito desse período de horror por que todos os que se casam passamos.
Porém, não fui transformado em abismo em vão.
Nem sou um poetinha de meia-tigela — não!
Sou safado mas no sentido de travesso, não de cafajeste.
Quando caio em mim, tenho que me cair todo. Assim que me acordo, me acordo outra vez, pela segunda — de novo. E já vou gritando: Fiat Lux! Ou você pensa que é um só Deus que me ilumina? A luz de um só Deles me seria pouca. Fechado no escuro do meu quarto me abro inteiro para tudo quanto é lado, principalmente para o lado de dentro. Hoje estou com Ele no corpo. Não ligue: Diabo eu escrevo com maiúscula. Diabo é uma espécie de Deus — a melhor. Mais sangüíneo, mais esperto, o Diabo é o inventor do frenesi, o criador das circunstâncias em que mergulho todo santo dia. Porque sempre me orgulho pelado: a pele é a maior proteção. A nudez enluarada me descobre das próprias vergonhas humanas, aquelas mais profundas, e me cobre de amor e tesão por mim.
Sou rebelde.
Não posso ser outra coisa.
Fui, sou e serei sempre contra os conservadores.
Sou revolucionário: amo a vida, a liberdade, o amor.
Isso já vem de família.
Não é genético, mas hereditário.
Meu bisavô Luiz Marques, como eu já disse, era um rebelde: trocou o futuro certo e garantido por um presente gostoso, montou o cavalo negro do risco absoluto... e partiu!
As perspectivas são infinitas.
Vou agora dirigir meu próprio show!
No segundo dia da criação Deus reuniu-se lá no céu com os anjos e os arcanjos, Lúcifer entre eles. Aliás, Lucifer é da mitologia grega; os judeus tinham o Hasatan, ou Satanás — que foi criado para impor medo. Ao contrário de Satanás, Lucifer era um fornecedor de coragem, um símbolo de resistência à autoridade.
Quem costuma ter prazer não coloca o rabo entre as pernas. Por isso o repressor moralista que supunha saber mais que a própria Natureza inventou a circuncisão e conseguiu convencer os seus pares de que isso era um bem. Ele sabia o quão importante era o papel do prepúcio nas relações sexuais e na masturbação do homem. O judeu circuncidado, infelizmente, jamais conhecerá o verdadeiro orgasmo.
Nem mesmo a Jesus lhe permitiram tal prazer.
Como disse Paritosh:
Felizes aqueles que gravitam ao meu redor:
— a luz do Sol faz bem.
Pela janela do banheiro vejo lá na rua um velho desgraçado arrastando-se num par de muletas: deixou um pedaço da perna direita em algum lugar do passado. Mas (fico pensando), quais muletas serão mais horrorosas: — essas que amparam o corpo que teve certas partes amputadas, ou aquelas que escoram a alma cuja metade foi comida pelos vermes do desânimo?
Acho que um desgraçado nunca vai ler o que escrevo — e se ler, não vai gostar. Infelizes detestam quem fala de prazer e de alegri-a. Para um escravo, tal assunto é tabu. Para um escravo, a liberdade é frescura. Falo apenas para espíritos livres. Só gostará do que escrevo quem já vive de amor. Só esses é que vão gostar do que eu digo. Acontece que um livro jamais será melhor que a biografia do escritor. Nenhuma obra supera a vivência do próprio autor. Literatura sem observação é vazia. Sem experiência, toda arte só pode ser oca.
Nada substitui a vida, meu querido Zaratustra.
Sempre achei que as melhores leituras que de mim se fazem são as dos teus olhos quando me (des) cobrem de espanto!
Para Voltaire a coisa mais bem distribuída no mundo é o bom senso: “ninguém acha que tem pouco...” Nem você, é claro. Mas, antes do fato, não importa o que se diga dele. Sou comedido ao contar as aventuras — são muitas, teria de contá-las devagar. Quando chego a mil, perco a conta, começo tudo outra vez. Isso, quando as conto. Mas não conto todas: não sou louco! Eu gosto mesmo é de vivê-las, as aventuras, não de contá-las. Só as conto por precisão, por ofício, por ócio — e por amor.
Para mostrar a você que é possível viver fundo, viver tanto.
(Tudo de uma vez.)
“A esperança é um sonho que caminha”, disse Aristóteles. Mas nem sei por que me lembro disso agora. Só espero que você perca o medo antes de perder a esperança. Espero que você mostre o avesso da Pandora ao avesso da caixa, e o avesso de si a si mesmo. Que não se contenha em mostrar só o Continente, mostre também o Conteúdo — oceânico. Faça como eu, que abro-me, mostro meus avessos, entranhas coloridas e inteiras, exponho-me como doces invertidos num balcão de sacrifícios. Então, meu interior se agita, cria coragem e resolve mostrar seus próprios avessos. As conhecidas entranhas se reviram e se abrem para dentro. Descubro que a parte mais profunda de mim é o contrário dos meus avessos, e que o lado de dentro do meu lado de fora é a fantasia que de amor me veste.
À minha frente, um abismo;
à direita, um despenhadeiro;
à esquerda, um precipício,
e atrás de mim — uma pirambeira;
Só posso mesmo estar no pico!
Minha grande inspiração é Henry Miller. Rimbaud mudou a visão do mundo de Henry Miller. E eu, influenciado por Henry, vou em busca de Rimbaud e encontro Baudelaire mudando a cabeça de Rimbaud — e este virando a cabeça de Verlaine para todos os lados. É um círculo maravilhoso. Paritosh, Nietzsche, Kierkegaard; Sartre, Reich, Jesus; todos pairando sobre mim como doce ameaça de vida. Sinto-me Dâmocles, e a espada — suspensa por um fio de seda — brilha seu fio nesta tarde de sol. O vento a balança, eu olho pra cima, começo a sorrir. Tudo por um fio. É neste momento — quando confio — é neste exato agora que a Vida chega. A vida só chega no justo momento em que temos consciência de que ela está por um fio...
— Só neste momento!
Cabos de aço não conseguem segurar a vida, porque ela não se prende a brutalidades. A linha que a segura tem que ser fina, delicada. Há que ser fino para se viver de verdade. A vida não se liga a coisas grossas, densas, brutas. Vista-se de véu para viver de luz. Ou você acha que seria possível viver sempre de mortalha? Só falta ter tesão por escritório! Aliás, ouvi um dia desses essa frase lapidar:
Nunca se apaixone por uma pessoa jurídica...
Talvez valha para você.
Me ocorre perguntar: será que você sabe quem foi Dâmocles? Vou abrir o Webster na página incerta da minha memória: Ele parece que foi “a courtier forced by Dionysius the Elder, tyrant of Syracuse, to sit under a sword suspensed by a single hair, to demonstrate the precariousness of a king’s fortunes”. Mais ou menos isso. Se não me entendeu — stop! É melhor parar — ou estudar inglês. E não pense que “fortunes” são apenas haveres e riquezas. Mas não desista agora: é cedo, e você terá tempo de se aprimorar.
Acontece que a casa da vida continua pegando fogo.
A partir de onde e a partir de quando você começará a fugir?
Já se decidiu?
Eu, quando tenho que fugir, fujo como herói. Sempre para a frente — em direção ao futuro.
Os saudáveis enlouquecem; os outros ficam por aí, parecendo normais. Os normais aceitam o mundo com o ele é — e os loucos querem mudá-lo. Por isso é que o mundo muda só por causa dos loucos. Se todos fossem normais não haveria progresso.
Jesus é um exemplo.
Toda época crucifica aqueles que a superam. Entretanto, os próprios crucificados, ao não se submeterem, é que fazem uma época sobreviver a si mesma. É um risco. Apesar disso, há décadas venho polindo meu espírito, delicadamente, com esmero. Por que então não deveria ele agora estar brilhando?
Negar meu potencial significa matar-me como ser humano.
Se por acaso eu vivo um dia de rotina, espremo à noite o meu cérebro como quem torce roupa, e não sai nada — nem uma palavra, nem uma gota, nem um pingo, nenhuma emoção. E meu corpo só consegue adormecer. Mas quando vivo um dia de aventuras, vivo também uma noite de amor. E meu cérebro, só, sem esforço, produz e me oferece um milhão de palavras, tempestade de desejos e de mel, um livro inteiro se quisesse. E meu corpo — um milhão de orgasmos de uma vez. Só aventuras acumulam as energias de que meu corpo precisa, e minha alma merece.
Então me lembro de Silene, de novo.
Hoje fui à casa dela e encontrei seu pai, um homem simples, simpático, me tratou carinhosamente. Tem uma barbearia. Conversou comigo, sorriu pra mim, parecendo agradecido. Mas se soubesse as coisas que fazemos — eu e sua filhinha —, ele provavelmente me expulsaria de lá. Mas, se soubesse, mesmo, o que eu e Silene estamos fazendo há mais de uma semana; se pudesse saber, mesmo, o tamanho do amor puro que sinto por ela; se soubesse, mesmo, o quanto sua filha é respeitada por mim, em todos os sentidos — me agradeceria mil vezes por segundo. Se o pobre homem soubesse, por exemplo, que a vida sexual da sua filha era um deserto antes de mim; que ela ainda não havia sido amada de forma alguma; que eu a transformo de mulher em musa, diariamente; se soubesse quem sou realmente — esse homem religioso me recomendaria ao seu Deus, e talvez até colocasse uma pequena estátua minha no oratório do seu quarto, para venerar-me todo dia.
Santo Edson!
(E eu agora o respeito como se já soubesse quem sou.)
Lembro-me do olhar bondoso que me deu quando fui vê-la, e ela não estava. Simulei que fora entregar um envelope, duas folhas dentro, poemas que escrevi. Para ele, importantes documentos, talvez. Dirigi-me àquele homem com meu olhar ressabiado, confuso, e ele devolveu-me um olhar terno, fraterno, quase angelical.
Fiquei pensando.
Foi com seu dinheirinho ganho ali, honestamente, manuseando pentes, escovas e tesouras, que foi comprada aquela camiseta branca de malha que ela ontem usava — e que molhei com saliva na altura dos seios para que os mamilos saltassem. Foi com o esforço de pai que sua mãe comprou aquela calcinha de algodão, macia, fofinha, azul, que ontem tirei puxando-a com meus dentes de amante. Silene senta-se talvez naquela cadeira ali, ao lado da mesa que vejo através da janela, para tomar café com leite toda manhã, pão com manteiga passada por suave mão de mãe. Foi com o amor desse homem que se fez essa musa há mais ou menos dezessete anos.
Por isso, só posso mesmo amá-la tanto.
É para mim uma honra, Silene, poder te amar da forma como te amo hoje. Tanto, que você não sabe. Nem sabe esse homem tão puro, teu pai, de quem não sei ainda sequer o nome. Então, numa tarde de sol, vou me sentar na velha cadeira azul do seu salão, e pedir-lhe, "por favor", que me raspe a barba rala e cinza de dois dias, essa amanhecida e poética barba de cafajeste. Vou olhar-me bem de frente naquele espelho oxidado, cheio de manchas nos cantos, e que tem moldura de madeira comida por anos e cupins. Vou olhar-me firme no espelho, e supor-me um deus arrependido.
Arrependido — mas sincero.
Enquanto afia a navalha na tira de couro pendurada no braço de ferro da cadeira Ferrante, vou esboçar um sorriso ao canalha que pareço que sou, lá no espelho — e respirar fundo. (Sinto-me Sófocles com dor de barriga: “A justiça é às vezes inoportuna.”) E quando estiver com meu rosto cheio de creme, branco como palhaço húngaro em corda bamba; quando ele levantar a navalha com sua mão direita, naquele gesto delicado e profissional de um homem honrado que sabe o que faz; quando colocar o indicador de sua mão esquerda no meu queixo para esticar um pouco a pele bronzeada — quando for este preciso instante vou lhe dizer, com poesia, com cuidado:
— Senhor, fui eu que tirei a virgindade da sua filha...
Uso linguagem direta, meio rude, que não é minha: virgindade não se tira. Mas sei que ao ouvir tal palavra vai parar seu gesto ao meio. Ficarei imóvel também, aguardando a decisão da suprema corte que lhe habita o coração. Que lhe agita o coração. Mil dragões e anjos em luta no labirinto em que sua cabeça se transforma. Verei no espelho o movimento da sua garganta engolindo em seco alguma coisa. Verei tudo o que for possível ser visto no instante que pode ser meu último. Tentarei ver o brilho suspenso da velha navalha refletido no espelho, como farol de uma ilha perdida orientando náufragos de um amor que sobe à tona.
E continuo:
— Foi ontem, Senhor, no luar prateado de ontem à noite, as estrelas por testemunhas — foi ontem que amei sua filha Silene...
Esse, o momento!
Esse, o absoluto momento que quero viver. O fio da navalha! Um momento em que minha vida estará pulsando nas mãos indecisas de outra pessoa, nas mãos do homem que é o pai da inocente futura mulher que eu hoje mais amo no mundo. E que talvez não consiga compreender minha atitude.
— Por que você diz isso agora? — perguntará ele.
— Para se fazer justiça, meu senhor.
E ele ali, meio perplexo, a navalha meio cega suspensa por meus olhos, seu indicador apontando um lugar imaginário no meu queixo branco de espuma, a jugular clamando gumes.
Lembro de Silene, com vontade enorme de beijá-la e lhe dizer: “Ontem à noite, enquanto os relâmpagos penetravam insistentemente pela janela e faziam teus olhos brilharem de prazer, eu cheguei a desejar: que os deuses te protejam da minha ousadia — mas nunca do meu amor.”
Um mosquito pousa na minha testa.
O vento balança um bilhetinho pregado com durex na moldura do espelho, ao lado de uma velha propaganda do Maluf.
Um cachorro late lá na esquina.
Uma criança passa correndo atrás de um gato.
Vejo que a navalha não tem fio: tem uma linha de raciocínio. Respiro cuidadoso, como Bergman em noite de verão me dirigindo. Crepitam gravetos e coivaras no meu peito, meu pulmão direito agora muda de lugar e o esquerdo se tranforma em suspirante coração.
Continuo dizendo, calmo:
— Ontem à noite Silene não foi à escola: fomos à minha casa. Ela aceitou meu convite pra jantar. Tomamos vinho, olhamos a lua, ouvimos música, dançamos...
Em voz baixa, vou lhe dando mais detalhes.
Conto tudo. Até falo dos relâmpagos.
É um duelo informal de cavalheiros: eu entro com a história — ele, com o silêncio. Eu entro com a garganta e as emoções — ele, com a faca e o risco. Eu entro com a dor; ele, com a filha.
Sinto que me olha sem piscar.
Mudo.
Minhas mãos pousadas no descanso da cadeira.
Esse é o momento.
(Vai ser assim!)
Porque o Paraíso não pode ser lugar de gente morta.
Há que ter risco.
— Risco, navalha, tempo, garganta, mulher, emoção.
Tudo por um fio...
Mas agora uma garrafa de vinho pela metade, rosa vermelha ansiosa por mim, três ou quatro velas azuis em castiçais de prata espalhados pela sala, uma penumbra gostosa onde sombras delicadas dançam por si mesmas, o Bolero de Ravel crescendo em todos os sentidos no meu peito apaixonado, uma brisa noturna e encantada entrando pelas portas e janelas. Mistérios no ar, desejos, também. Às vezes, silêncio: e Ravel retorna.
Espero uma das outras minhas amadas.
Se ela chega, agradeço a Deus por ter chegado, e nos amamos da forma mais gostosa. E se não chega, agradeço a Deus por não ter vindo, e continuo a me amar da mesma forma. Não faz diferença se danço com você, ou se sozinho: amo as duas coisas, e a dança sempre acontece primeiro dentro de mim. No fundo, sempre agradeço a Deus por você vir, e agradeço mais ainda se você some por uns tempos. Quando você desaparece, meu amor, o espaço que você deixa é enorme: e então procuro ocupá-lo de modo diferente, pois cabem dez outras dentro dele...
Olho para meu corpo como se olhasse a própria Natureza.
Um pedaço dela — o mais importante e o mais belo, concluo. Quando passo as mãos em mim, é como refinasse uma escultura, cobrindo-a de amor e de ternura.
Eu — meu alimento!
Quando me toco ouço música. Vibrante.
Não tenho uma vida só, eu tenho muitas. Todo dia, ao levantar, escolho uma delas pra viver. E são todas perfeitas, porque livres. À noite, quando venho dormir após extensa jornada de amor, guardo em mim essa vida que hoje vivi — e vivo-a de novo. Sou garimpeiro de sonhos remexendo cascalhos de amor. Se vou mudar esse jeito louco de ser, nem Deus sabe. Eu acho que não.
— Se você não acredita, é melhor parar.
Hoje me espanto ao ver que essas coisas que se transformaram em mim já existiam — separadas — e só se uniram para formar-me. E que outras continuam vindo para tornarem-se-me. Que inteligência será que as conduz até mim? Por que será que me escolhem? Ou por que é talvez que aceitam o convite para que venham a constituir-me dessa forma tão gloriosa e cativante?
Onde andará hoje essa mulher, que ainda nem conheço — mas por quem vou estar apaixonado semana que vem?
Continuo perguntando como se fosse alpinista:
— Posso ver tua pequenina montanha, meu amor?
— Sim — ela responde.
"Eu sempre digo sim, quando você me fala de amor".
Então levanto delicado o azul de sua saia, clarinho, passo as mãos por suas coxas, sinto a penugem que lhe cobre a pele lisinha, firme, e vou subindo, subindo, subindo. A calcinha é preta: surpresa para mim. Adoro surpresas. Imaginava que fosse bege. (Essa é uma das vantagens dos amores passageiros: a gente nunca sabe a cor da calcinha que ela veste.) E vou subindo mais ainda minhas mãos nessa escultura de carne, sangue, tesão e arrepios.
Sussurro: — Que maravilha...
E ela, como penteasse delicada meus cabelos com os próprios dedos abertos, sorrindo, sentada na cadeira branca:
— Você é o amor.
Noto que ela não disse: “um amor”, e sim: “o amor” — e frisa (demoradamente, eroticamente, lascivamente) o artigo definido, masculino, singular. Mas não será agora que vou lhe ver a deliciosa colina. Vou deixar para depois, outro dia, quem sabe. Talvez nunca. Porque a mim me interessa mais a permissão que ela deu. Basta. Eu sei que amanhã talvez, na cama, numa posição mais confortável, vou lhe tirar a calcinha puxando-a com meus lábios evidentes. E vou então poder observar-lhe o clitóris, sua cor, sua textura, seu tamanho, volume, gostosura, freqüência, pulsações por segundo, essas coisas.
Amanhã... talvez.
Ou talvez nunca — porque nunca tenho pressa.
Hoje, hoje eu só quero tocar o clitóris da própria vida.
A seu tempo, tudo se resolve.