30.3.02

Pensei que esse assunto só viria bem mais tarde, mas tem que ser agora. Afinal, você pode sofrer um colapso na página quarenta e sete e morrer sem saber o que eu digo; pode ser transformado em cinzas num ataque suicida, levar tiro de um ciumento, cair do quinto andar, ou morrer atropelado por um fusca, quem sabe.

E Montaigne insiste: “Se não der para salvar a consciência, Edson, salve pelo menos a reputação”.

O que eu digo é muito mais do que provocação: é um desafio emocionante: é a maravilhosa possibilidade de escolher o próprio caminho na vida. Nada mais — e nada menos! É um convite à transformação pessoal: é a busca por tudo aquilo que é fundamental à própria dignidade humana. O que proponho é a ruptura com esse marasmo em que tua vida se tornou. Você tem que romper, radical-mente, porém conscientemente, com essas normas morais injustas — e com tudo o que de alguma forma te oprime e faz sofrer.
Porque você hoje parece que mais tosse do que ri...

Não se esqueça disso: sempre que nos afastamos do caminho da verdade acabamos violando nosso direito de ter sorte.
Temos que reagir a cada batida do coração.
Como dizia Paritosh: “Só quando assumimos ter um dono é que ficamos dispensados de lutar.”
Você sabe: ser escravo é muito fácil: qualquer idiota consegue.
Difícil é ser livre — livre de verdade!

Ficar em Buenos Aires e montar um consultório na esquina da Corrientes com Calle Florida, colocar uma plaquinha na parede e mandar escrever "Clínica Geral" — isso seria loucura. Mas largar tudo, pegar a moto e sair pelo mundo, arriscar a vida, e depois ajudar a fazer a mais bela revolução da História — isto também é loucura.
Será que você percebe a diferença entre as duas?
A primeira loucura assemelha-se a babas contorcidas numa boca torta e feia. A outra é lúcida, brilhante, radical e deliciosa!
Certos dias quero ser James Joyce, outros dias, Che Guevara. Aliás, Che não abandonou tudo uma vez só. Quando já estava em Cuba, coberto de glórias, idolatrado por todos, Ministro da Indústria e Comandante do Exército — abandonou tudo outra vez!

O que escrevo é isso. Até o fim do livro será esse o assunto principal: abandonar tudo. Até o fim da minha vida eu vou ficar falando, sem parar, dia e noite, sobre Literatura e Revolução; sobre Filosofia, Amor e Liberdade. Religião e Putaria. Abandonar tudo outra vez. Lógica e Salto Profundo. E se a você não interessam tais assuntos, feche este livro agora mesmo, e desapareça da minha frente.

Se não puder dar atenção, me dê sossego.

Porque escrevo especialmente para deliciar-me com minhas próprias palavras. Em meio a elas conjugo-me feito Verbo. Sou o primeiro a sentir o prazer absoluto que esta leitura proporciona. Es-crevo porque fiz há vinte anos um pacto com Lúcifer: em troca da minha alma ensinou-me Ele a escrever. E agora escrevo tão bem que sou capaz de convencê-Lo de que me chamo Göethe. Ou James, ou Vladimir, José, Arthur, Leon, Henry, Pablo, Charles, Victor, Edson...
O talento vem do Mestre, mas o Ego Deus me deu.
(Já nem sei qual dos dois é maior em mim.)

Submeto-me à arbitrariedade do meu bom gosto — e escrevo. Não para que você concorde comigo, mas para transmitir emoções, e para que você pense um pouco sobre a vida que hoje leva. Para que você veja o mundo de outra forma. Escrevo para excitar teu intelecto e abrir teu coração. Nada mais. E se um dia teus neurônios e teu sangue me negarem, nunca mais virei aqui. Nenhum escritor pode ser um condutor de almas desgarradas. No máximo, o escritor indica um caminho que pode nos levar ao paraíso da estética. Porém, o escritor só mostra o caminho: não conduz, jamais. Aliás, no fundo, nem mesmo mostra; apenas diz que existe um caminho — talvez...
Escrevo, sim, mas para falar de amor. A propósito, o título do meu novo livro é “Coisas Que Eu Nunca Disse”.

— E o que é o amor? — Mefisto me pergunta em teu lugar.

Certa vez, adolescente, começando a supor que entendia da vida, escrevi uma bela definição de amor. “Quem?” — vejo teus olhos parados em mim, interrogantes. Se você não sabe quem foi Mefistófeles, depois te conto. Mas a perna da minha cama um dia quebrou, e Fausto foi a salvação. Rimbaud também dormia aos meus pés. Arthur Rimbaud — como eu queria tanto ser ele! Fiz a Beleza sentar-se no meu colo. Nietzsche, Marx e García Lorca também eram tijolos que me amparavam nas minhas noites bambas. Eles acendiam luas novas na escuridão do meu quarto crescente. Eu já era homem de brilhantes perspectivas, grandes horizontes, sonhos enormes, e futuro radiante, ensolarado. Mas sem nenhum presente! Aqui reside o segredo principal do meu sucesso: sem nenhum presente. Se eu não me mexesse, afundaria com as circunstâncias. Era preciso que eu sumisse dali, que abandonasse tudo que me era próximo. Tudo: pai, mãe, irmãos, a família, os amigos, o dentista, o professor, o padre, as namoradas, minha vó, meu desespero. Eu tinha que abandonar tudo — inclusive as idéias, especialmente as preconcebidas. Os cobertores, a pátria, a religião, e até mesmo meu cavalo Estrela. Minhas bolinhas de gude, meu quarto, minha mesa, minha cama, meus recortes de jornal. Eu tinha que abandonar tudo. Eu precisava me desligar do passado — e, como não tinha presente, jogar-me de cabeça nas águas do mundo, na correnteza da vida. Porque só o rio da vida é alegre.
Voltemos ao tema — riverruning.

Amar é permitir sempre, amar é deixar que o outro vá — ou que fique, se assim o desejar. Amar é ter um respeito absoluto pela própria liberdade — e pela liberdade do outro. Amar é compreender sempre. E isso não significa apenas entendimento racional, vai além, muito além: Amar é reconhecer — afetuosamente — o direito que o outro tem de fazer suas escolhas.
— Mesmo que essas escolhas eventualmente me excluam!

Quem não concorda com tal idéia de amor não merece o meu. Aliás, recuso o amor de quem não ama a própria liberdade antes mesmo de me amar. Quem não respeita a sua, não respeitará a minha.

O amor tem que ser livre, em todos os sentidos. E se não for livre, chame-o de qualquer outro nome, menos de amor...

Portanto, mude.

Toda mudança requer um plano. Às vezes, plano esboçado em folha de papel, outras vezes, plano intuído no cérebro das pessoas. Contudo, a melhor mudança é aquela que só requer um plano inclinado, por onde vamos escorregando em óleo de amêndoas doces, como se fosse no corpo de um grande amor. Deslizamos até a borda — e então saltamos no vazio do belo escuro azul profundo da vida. Mas tem hora que a gente verbaliza mudanças sem atitudes que lhes correspondam. Também faço isso às vezes. Será talvez vontade real de mudar sem permissão das circunstâncias, uma vontade objetiva que pretende puxar o processo subjetivo da suposta mudança — ou será apenas um subterfúgio mental para satisfazer o meu ego?
Não sei.
Só sei que com uma das mãos eu defendo a liberdade, e com a outra acrescento algumas horas ao meu dia. Também distorço certas coisas. Necessitamos de um pouco de ficção para realçar a verdade. Distorço o que me dizem — para melhor, suponho. Interpreto na hora o que ouço, filtro as bobagens, e obtenho um produto limpo, carregado de poesia. Faço tradução poética simultânea das coisas que chegam até mim, modifico as construções verbais, retoco as imagens, ponho lógica onde cabe — e só então ofereço aos meus sentidos mais profundos o que vejo, ouço ou leio. (Por isso o que você diz sempre me causa uma ótima impressão...)
Mas quando as coisas resistem às idéias e o mundo resiste aos sonhos — não penso em mudar de sonhos nem mudar de idéias: eu primeiro procuro mudar as coisas e mudar de mundo!
Idéias e sonhos, só bem mais tarde — quem sabe...
(Ah, “Memento mori” quer dizer “lembra-te que morrerás”.)
Subo porque descendo direto de Heráclito.
Mudar não é uma opção suspensa:
Mudar é uma necessidade!
— Só o que está morto não muda.
(Em verdade, o que está morto também muda, mas não vamos levantar polêmica agora. Outra hora discutiremos essa tese.)

Pense no seguinte:

Se nós vivêssemos e agíssemos exatamente como nossos pais queriam; se nossos pais fossem exatamente como nossos avós; se nossos avós seguissem exatamente o que lhes diziam os pais deles — e assim por diante — hoje provavelmente o ser humano ainda viveria trepado em árvores e abanando moscas com o próprio rabo...

Sem ruptura não há progresso.

Vou agora emprestar meu coração aos meus amores, para que eles amem a si mesmos como se me amassem — e se deleitem com essa gostosura indescritível. Eu vivo trocando um entusiasmo por outro, geralmente maior. Porque amores, vou tê-los muitos para que os tenha sempre. Faz mais de vinte anos que a minha namorada tem dezoito. Às vezes, dezessete. Ousei amar de modo diferente, tive a coragem de continuar puro nos meus relacionamentos. Algumas pessoas querem punir-me por isso, mas sobrevivo, sobre todos. E o que mais indigna meus detratores é que são poéticas as minhas transgressões. Quando enfio a cabeça gloriosa pela janela da vida, já não sei se estou olhando para fora de mim, ou para dentro. Então mergulho nessa alegre correnteza onde eu rio fluente de mim mesmo — líquido, cristalino, gargalhante. E fico fazendo previsões nos abraços tântricos de Osho. Só tenho seis meses de vida, suponho — e vivo radicalmente de acordo com tal suposição. Se ao fim desse período a morte não me houver levado, tudo o que vier depois será um presente — e uma bênção.

E você, tem certeza de que viverá mais do que seis meses?

Lembre-se:
Nem todos que largaram tudo chegaram lá.
Entretanto, quem nunca largou, jamais conseguiu chegar!

Da morte não escapamos — e caixão não tem gavetas.

Mas Deus foi generoso comigo. Minha estréia se deu no dia 15 de julho de 1900 e tantos. E isso mudou minha vida para sempre. Aos cinco anos de idade já completei dez. Jogava bolinha de gude como se arriscasse a vida: para ganhar dinheiro — e todo o dinheiro que eu ganhava investia em doces. Minha infância virou açúcar. Ganhava todas. Tive que ser competente. Fui estimulado a ser criativo.

Por isso eu digo.
A chance agora de eu não dar certo é zero!
A propósito, Regina ontem disse-me que Alexandre, o Grande, com menos de quarenta anos já tinha conquistado o mundo!
“Mas com menos de cinqüenta já estava morto...”
Será que vale a pena?

Por isso te proponho algo que está no livro “Solidão a Mil”:
Olhe para os lados.
Agora mesmo, onde você estiver, olhe para os lados. Ajuste a consciência, apure a sensibilidade, abra seu coração, respire fundo, olhe para os lados outra vez, e responda-me sinceramente:
— As pessoas com as quais você hoje convive são amorosas, compreensivas, inteligentes, excitantes, audaciosas, livres, saudáveis, brilhantes, honestas, sensíveis, delicadas, independentes, e cheias de entusiasmo pela vida?
— São?!
Porque, se assim não forem, responda-me:
— O que é que você continua fazendo aí?


O que é que você continua fazendo aí?

cadaver de um palhaço



O Cadáver de um Palhaço.

Quando se proíbe alguém de sentir o perfume de uma flor, perde o sentido o alguém, o perfume e a flor. A paixão se enfraquece, a história fica triste — e a relação se desfaz completamente.
É o fim.
— Quem ama não proíbe nunca!

O ciúme é a confissão de um sentimento de inferioridade.
Se você tem, não negue — mas procure curar-se.

O que digo é sempre fundamental. Então, por que considerá-lo de outro modo? Ainda que você não goste do que escrevo, acredite em mim. Mas isso não tem hoje para mim a mínima importância, pois não escrevo para ser famoso, nem falo para ser lido. Eu falo é por ser amado e escrevo porque gostoso. Minha literatura é feita de excessos — eu sei — mas é sincera, tem cadência, gostosura, suavidade, juventude, pulsação.
Contudo, até mesmo a sinceridade há limites.
Não se pode ser sincero além de um ponto.

Como eu ia dizendo:
— Não espere a próxima primavera para sentir o perfume de todas as flores.
Amanhã pode ser tarde demais.

A vida é um milagre — e não vou agora desperdiçar o meu!


As coisas que quero que aconteçam não virão jamais acontecer aqui, longe dos seus próprios lugares. Eu é que tenho que mover-me, urgentemente, para todos os lados — inclusive o de dentro.


Acabo de fazer uma promessa: Vou sobreviver a todos os meus amores. Naufragar por causa deles — jamais! Posso até me afundar um dia, quem sabe, mas ao voltar à tona trago nos dentes o punhal do pirata. Afundo-me em nome da liberdade, mas trago depois, enrolada na língua, a pérola pura, pois fui capaz de morder com doçura a ostra hesitante. O aventureiro que habita meu corpo pode até simular um naufrágio em teu nome, meu amor.
— Mas jamais quererei te salvar...


Releio o parágrafo acima, e descubro que sou ainda capaz de afundar-me — mas nunca apenas por solidariedade ao teu naufrágio. Posso até afundar-me de novo por altíssimas razões. Mas quando subo à tona trago liberto nos dentes o punhal de porcelana do pirata que amei. Sou capaz de afundar-me em busca de moedas de ouro, um certo tesouro no galeão espanhol que soçobrou no final do século XV. Afundo-me leve e trago outra vez enrolada na língua a pérola pura, pois lambi com doçura a ostra existente.

Isso me eleva: se afundo-me em mim, só posso subir.
E isso me enleva.


Lembro agora de coisas antigas como se em silêncio as vivesse outra vez. Aquela imagem de Dora, recortada em forma de palavras contra o escuro que meu peito projetava lá fora. “Se eu morrer, ela fica perdida no mundo, mas se ela morrer eu me liberto”. Por isso agora fico pensando: até que ponto eu mesmo (meu inconsciente) não a levou às tentativas de suicídio (embora, dentre as quatro ou cinco, duas apenas simuladas)? Se ela significava naquele momento a morte da minha vida; se ela estrangulava com eficiência a minha liberdade — e liberdade sempre foi tudo para mim — então: que morresse a desgraçada! Mesmo que conscientemente eu a amasse de verdade, meu inconsciente sabia que ela era um estorvo enorme no caminho da salvação. Eu havia passado cerca de vinte e oito anos lutando desesperadamente por liberdade (contra o pai, a escola, a moral, o sistema, o regime, a igreja, o partido, a burrice etc.) e agora, quando eu estava à porta da beira do abismo da liberdade, me aparece alguém com uma tranca horrorosa na mão. Uma fria corrente de aço com cadeado de ferro, e uma algema terrível no dedo anular.
Uma tranca de ciúmes e um cadeado de preconceitos!
Claro que meu inconsciente iria mesmo querer a morte dela.
É duro admitir isso agora, mas... é a vida!


Do que não presta, me esqueço, sempre. E se minha memória, que sabe das coisas, guarda um fato — por que iria eu jogá-lo fora? Amo só o que acontece e sempre me apaixono pelo ato em si. Sou cúmplice da realidade. Depois de quatro dias falando comigo mesmo perco a razão, e perco-a de forma profunda, como fosse perder a vida — só para buscá-la outra vez com amor não sei onde.
E com a certeza absoluta de que ela volta para mim — outra vez. Falo de mim como se de você.

E fico de novo pensando.
Que.

São cinco as instâncias principais que nos sufocam. Em português, começam com a letra P: os pais, o padre (ou pastor), os professores, a polícia, e o patrão. Se você não se livrar de todos eles — e da sua influência sufocante — jamais será feliz.
(Seria muita coincidência se teu nome começasse com p.)


Minha ideologia certas vezes reflete a tua, não porque iguais, mas porque você supõe viver num espelho. Nem todo espelho reflete a imagem que lhe damos: alguns a engolem como um fogo selvagem, vorazes, só para amá-la escondido e depois refleti-la no fundo do avesso mais fundo de si. Embora não saibamos o que pensa a imagem quando reflete a si mesma, devemos preferir as reflexões do filósofo às reflexões do espelho. Por isso é que às vezes me encontro cego.
Mas você não se acha cego.

Pois é...


Sabe aqueles dias em que teu peito parece uma Sibéria? Você olha no espelho da vida, olha fundo, e não vê um ser humano: — vê um palhaço. Nesses dias você tem que reagir, porque, se não reagir imediatamente, logo logo vai olhar no espelho da vida outra vez e terá uma surpresa horrorosa:
— Verá o cadáver de um palhaço!
Não falo isso pra te assustar — quem sou eu pra me ter medo? Sou bom, amável, e não seria capaz de meter medo nem mesmo a mim. Porque o medo é a mais baixa de todas as paixões humanas. Só a imaginação pressiona, de forma gostosa e radical, a transformação da realidade. Sem fantasia e coragem não se muda o cotidiano.

Meu maior defeito é ser bom demais.

Sempre fui amoroso: quando à noite voltava da escola eu trazia sorvete de abacate Frasson para minhas irmãs. E, fosse suficiente o dinheiro, a surpresa poderia ser chocolate Diamante Negro.
Que belo gesto de amor!


— Quem sou eu? — você pode perguntar.
Sou um poeta, um escritor de idéias, bem-sucedido mas ainda não famoso. Escritor de idéias libertárias, eis o que sou. Um trapezista louco e cheio de paixão dando um triplo salto vital no escuro do circo chamado vida, sem redes de proteção. Porque sempre que ouço a voz de Deus dizendo-me “Salte!” — eu salto.
Começo a ouvi-la de novo, insistente.

Eu perdi a virgindade, mas não perdi a inocência: ainda há um menino escondido no meu peito. Sorrindo. E a voz de Deus que ouço vem de Mim. Meu coração é que se abre todo, como fosse uma boca — e me conta coisas, segredos, me conta quase tudo.
A voz de Deus me conta histórias, me acalenta, faz ninar.
E grita comigo às vezes — que nem agora que grita salte!

Insisto:
Só quem salta inteiro no belo escuro azul profundo da vida é que pode viver e brilhar de verdade.

E você — tem saltado muito? Como vão aqueles teus antigos delírios voadores? Como estão tuas delícias, teus amigos, teus amo-res? E os teus brilhos, teus laços e rancores?
— Como vão tuas paixões e tuas dores?
Ah, você só quer saber das minhas? Deveríamos fazer uma troca, não delas, propriamente — as delícias e as misérias — mas do seu relato apenas. Sei que é difícil pra você abrir o peito assim, à faca, e mostrar-se inteiramente — é muito difícil. Dói, eu sei. Mas o gostoso nesse tipo de dor é exatamente isso: Doer em êxtase.
Você nem imagina...
(E se você entende — é melhor saltar.)



Se eu não levasse essa vida louca que levo, sobre o que então escreveria? Eu escrevo, você se lê. Por que não invertemos os papéis? Eu me mudo em leitor e você fala que escreve. Ah, você só quer me ler? Quer saber o que tenho pra dizer? Saber dos amores que já tive — e gozar com minha boca digital e minha história, é isso?
Você não vai ficar satisfeito...
Ou você, no fundo, só quer saber das maldades que eu já fiz? Você é apenas um leitor, ou fiscal do meu prazer? Leitor? Ah, bom. Mas pretende que eu fale dos pecados que cometo em nome de Deus? Quer saber as razões pelas quais matei a Leprosa — se é que existem. Acho que você quer me ver confessando as sujeiras que ainda nem fiz. Você pensa: “será que vou encontrar um outro cadáver fresco, coberto com jornal de ontem, na próxima linha? Será que o safado vai confessar talvez um assalto no capítulo dois?”
Acho que você não vai ficar satisfeito. Se for só por isso que você me lê, é melhor parar. É melhor ler algo de Albert Camus, talvez “O Mito de Sísifo”. Pois Galileu também teve que mentir.

A Leprosa a que me refiro neste livro foi a mais inesquecível namorada que já tive. Os orgasmos ruins que sofri ao lado dela foram pouco a pouco enfraquecendo minha alma de forma impressionante. Da gloriosa condição de touro selvagem recém despertado, passei a ser um boi manso amarrado no pasto. Amarrado no pasto, e comendo capim. Engordando — e só aguardando a hora da morte. Meu peito virou desastre, o desânimo tomou conta de mim, a criatividade sumiu, a vida perdeu a graça, o mundo perdeu a cor, a alegria virou tristeza, o tédio era constante, me tornei um abismo.
Ninguém sai ileso de um casamento tradicional.
Logo mais falarei a respeito desse período de horror por que todos os que se casam passamos.


Porém, não fui transformado em abismo em vão.
Nem sou um poetinha de meia-tigela — não!
Sou safado mas no sentido de travesso, não de cafajeste.


Quando caio em mim, tenho que me cair todo. Assim que me acordo, me acordo outra vez, pela segunda — de novo. E já vou gritando: Fiat Lux! Ou você pensa que é um só Deus que me ilumina? A luz de um só Deles me seria pouca. Fechado no escuro do meu quarto me abro inteiro para tudo quanto é lado, principalmente para o lado de dentro. Hoje estou com Ele no corpo. Não ligue: Diabo eu escrevo com maiúscula. Diabo é uma espécie de Deus — a melhor. Mais sangüíneo, mais esperto, o Diabo é o inventor do frenesi, o criador das circunstâncias em que mergulho todo santo dia. Porque sempre me orgulho pelado: a pele é a maior proteção. A nudez enluarada me descobre das próprias vergonhas humanas, aquelas mais profundas, e me cobre de amor e tesão por mim.

Sou rebelde.
Não posso ser outra coisa.
Fui, sou e serei sempre contra os conservadores.
Sou revolucionário: amo a vida, a liberdade, o amor.
Isso já vem de família.
Não é genético, mas hereditário.
Meu bisavô Luiz Marques, como eu já disse, era um rebelde: trocou o futuro certo e garantido por um presente gostoso, montou o cavalo negro do risco absoluto... e partiu!

As perspectivas são infinitas.
Vou agora dirigir meu próprio show!



No segundo dia da criação Deus reuniu-se lá no céu com os anjos e os arcanjos, Lúcifer entre eles. Aliás, Lucifer é da mitologia grega; os judeus tinham o Hasatan, ou Satanás — que foi criado para impor medo. Ao contrário de Satanás, Lucifer era um fornecedor de coragem, um símbolo de resistência à autoridade.
Quem costuma ter prazer não coloca o rabo entre as pernas. Por isso o repressor moralista que supunha saber mais que a própria Natureza inventou a circuncisão e conseguiu convencer os seus pares de que isso era um bem. Ele sabia o quão importante era o papel do prepúcio nas relações sexuais e na masturbação do homem. O judeu circuncidado, infelizmente, jamais conhecerá o verdadeiro orgasmo.
Nem mesmo a Jesus lhe permitiram tal prazer.
Como disse Paritosh:
Felizes aqueles que gravitam ao meu redor:
— a luz do Sol faz bem.


Pela janela do banheiro vejo lá na rua um velho desgraçado arrastando-se num par de muletas: deixou um pedaço da perna direita em algum lugar do passado. Mas (fico pensando), quais muletas serão mais horrorosas: — essas que amparam o corpo que teve certas partes amputadas, ou aquelas que escoram a alma cuja metade foi comida pelos vermes do desânimo?

Acho que um desgraçado nunca vai ler o que escrevo — e se ler, não vai gostar. Infelizes detestam quem fala de prazer e de alegri-a. Para um escravo, tal assunto é tabu. Para um escravo, a liberdade é frescura. Falo apenas para espíritos livres. Só gostará do que escrevo quem já vive de amor. Só esses é que vão gostar do que eu digo. Acontece que um livro jamais será melhor que a biografia do escritor. Nenhuma obra supera a vivência do próprio autor. Literatura sem observação é vazia. Sem experiência, toda arte só pode ser oca.
Nada substitui a vida, meu querido Zaratustra.
Sempre achei que as melhores leituras que de mim se fazem são as dos teus olhos quando me (des) cobrem de espanto!

Para Voltaire a coisa mais bem distribuída no mundo é o bom senso: “ninguém acha que tem pouco...” Nem você, é claro. Mas, antes do fato, não importa o que se diga dele. Sou comedido ao contar as aventuras — são muitas, teria de contá-las devagar. Quando chego a mil, perco a conta, começo tudo outra vez. Isso, quando as conto. Mas não conto todas: não sou louco! Eu gosto mesmo é de vivê-las, as aventuras, não de contá-las. Só as conto por precisão, por ofício, por ócio — e por amor.
Para mostrar a você que é possível viver fundo, viver tanto.
(Tudo de uma vez.)

“A esperança é um sonho que caminha”, disse Aristóteles. Mas nem sei por que me lembro disso agora. Só espero que você perca o medo antes de perder a esperança. Espero que você mostre o avesso da Pandora ao avesso da caixa, e o avesso de si a si mesmo. Que não se contenha em mostrar só o Continente, mostre também o Conteúdo — oceânico. Faça como eu, que abro-me, mostro meus avessos, entranhas coloridas e inteiras, exponho-me como doces invertidos num balcão de sacrifícios. Então, meu interior se agita, cria coragem e resolve mostrar seus próprios avessos. As conhecidas entranhas se reviram e se abrem para dentro. Descubro que a parte mais profunda de mim é o contrário dos meus avessos, e que o lado de dentro do meu lado de fora é a fantasia que de amor me veste.


À minha frente, um abismo;
à direita, um despenhadeiro;
à esquerda, um precipício,
e atrás de mim — uma pirambeira;
Só posso mesmo estar no pico!


Minha grande inspiração é Henry Miller. Rimbaud mudou a visão do mundo de Henry Miller. E eu, influenciado por Henry, vou em busca de Rimbaud e encontro Baudelaire mudando a cabeça de Rimbaud — e este virando a cabeça de Verlaine para todos os lados. É um círculo maravilhoso. Paritosh, Nietzsche, Kierkegaard; Sartre, Reich, Jesus; todos pairando sobre mim como doce ameaça de vida. Sinto-me Dâmocles, e a espada — suspensa por um fio de seda — brilha seu fio nesta tarde de sol. O vento a balança, eu olho pra cima, começo a sorrir. Tudo por um fio. É neste momento — quando confio — é neste exato agora que a Vida chega. A vida só chega no justo momento em que temos consciência de que ela está por um fio...
— Só neste momento!
Cabos de aço não conseguem segurar a vida, porque ela não se prende a brutalidades. A linha que a segura tem que ser fina, delicada. Há que ser fino para se viver de verdade. A vida não se liga a coisas grossas, densas, brutas. Vista-se de véu para viver de luz. Ou você acha que seria possível viver sempre de mortalha? Só falta ter tesão por escritório! Aliás, ouvi um dia desses essa frase lapidar:
Nunca se apaixone por uma pessoa jurídica...
Talvez valha para você.


Me ocorre perguntar: será que você sabe quem foi Dâmocles? Vou abrir o Webster na página incerta da minha memória: Ele parece que foi “a courtier forced by Dionysius the Elder, tyrant of Syracuse, to sit under a sword suspensed by a single hair, to demonstrate the precariousness of a king’s fortunes”. Mais ou menos isso. Se não me entendeu — stop! É melhor parar — ou estudar inglês. E não pense que “fortunes” são apenas haveres e riquezas. Mas não desista agora: é cedo, e você terá tempo de se aprimorar.

Acontece que a casa da vida continua pegando fogo.
A partir de onde e a partir de quando você começará a fugir?
Já se decidiu?

Eu, quando tenho que fugir, fujo como herói. Sempre para a frente — em direção ao futuro.


Os saudáveis enlouquecem; os outros ficam por aí, parecendo normais. Os normais aceitam o mundo com o ele é — e os loucos querem mudá-lo. Por isso é que o mundo muda só por causa dos loucos. Se todos fossem normais não haveria progresso.
Jesus é um exemplo.
Toda época crucifica aqueles que a superam. Entretanto, os próprios crucificados, ao não se submeterem, é que fazem uma época sobreviver a si mesma. É um risco. Apesar disso, há décadas venho polindo meu espírito, delicadamente, com esmero. Por que então não deveria ele agora estar brilhando?
Negar meu potencial significa matar-me como ser humano.

Se por acaso eu vivo um dia de rotina, espremo à noite o meu cérebro como quem torce roupa, e não sai nada — nem uma palavra, nem uma gota, nem um pingo, nenhuma emoção. E meu corpo só consegue adormecer. Mas quando vivo um dia de aventuras, vivo também uma noite de amor. E meu cérebro, só, sem esforço, produz e me oferece um milhão de palavras, tempestade de desejos e de mel, um livro inteiro se quisesse. E meu corpo — um milhão de orgasmos de uma vez. Só aventuras acumulam as energias de que meu corpo precisa, e minha alma merece.

Então me lembro de Silene, de novo.
Hoje fui à casa dela e encontrei seu pai, um homem simples, simpático, me tratou carinhosamente. Tem uma barbearia. Conversou comigo, sorriu pra mim, parecendo agradecido. Mas se soubesse as coisas que fazemos — eu e sua filhinha —, ele provavelmente me expulsaria de lá. Mas, se soubesse, mesmo, o que eu e Silene estamos fazendo há mais de uma semana; se pudesse saber, mesmo, o tamanho do amor puro que sinto por ela; se soubesse, mesmo, o quanto sua filha é respeitada por mim, em todos os sentidos — me agradeceria mil vezes por segundo. Se o pobre homem soubesse, por exemplo, que a vida sexual da sua filha era um deserto antes de mim; que ela ainda não havia sido amada de forma alguma; que eu a transformo de mulher em musa, diariamente; se soubesse quem sou realmente — esse homem religioso me recomendaria ao seu Deus, e talvez até colocasse uma pequena estátua minha no oratório do seu quarto, para venerar-me todo dia.
Santo Edson!
(E eu agora o respeito como se já soubesse quem sou.)
Lembro-me do olhar bondoso que me deu quando fui vê-la, e ela não estava. Simulei que fora entregar um envelope, duas folhas dentro, poemas que escrevi. Para ele, importantes documentos, talvez. Dirigi-me àquele homem com meu olhar ressabiado, confuso, e ele devolveu-me um olhar terno, fraterno, quase angelical.
Fiquei pensando.
Foi com seu dinheirinho ganho ali, honestamente, manuseando pentes, escovas e tesouras, que foi comprada aquela camiseta branca de malha que ela ontem usava — e que molhei com saliva na altura dos seios para que os mamilos saltassem. Foi com o esforço de pai que sua mãe comprou aquela calcinha de algodão, macia, fofinha, azul, que ontem tirei puxando-a com meus dentes de amante. Silene senta-se talvez naquela cadeira ali, ao lado da mesa que vejo através da janela, para tomar café com leite toda manhã, pão com manteiga passada por suave mão de mãe. Foi com o amor desse homem que se fez essa musa há mais ou menos dezessete anos.
Por isso, só posso mesmo amá-la tanto.

É para mim uma honra, Silene, poder te amar da forma como te amo hoje. Tanto, que você não sabe. Nem sabe esse homem tão puro, teu pai, de quem não sei ainda sequer o nome. Então, numa tarde de sol, vou me sentar na velha cadeira azul do seu salão, e pedir-lhe, "por favor", que me raspe a barba rala e cinza de dois dias, essa amanhecida e poética barba de cafajeste. Vou olhar-me bem de frente naquele espelho oxidado, cheio de manchas nos cantos, e que tem moldura de madeira comida por anos e cupins. Vou olhar-me firme no espelho, e supor-me um deus arrependido.
Arrependido — mas sincero.

Enquanto afia a navalha na tira de couro pendurada no braço de ferro da cadeira Ferrante, vou esboçar um sorriso ao canalha que pareço que sou, lá no espelho — e respirar fundo. (Sinto-me Sófocles com dor de barriga: “A justiça é às vezes inoportuna.”) E quando estiver com meu rosto cheio de creme, branco como palhaço húngaro em corda bamba; quando ele levantar a navalha com sua mão direita, naquele gesto delicado e profissional de um homem honrado que sabe o que faz; quando colocar o indicador de sua mão esquerda no meu queixo para esticar um pouco a pele bronzeada — quando for este preciso instante vou lhe dizer, com poesia, com cuidado:
— Senhor, fui eu que tirei a virgindade da sua filha...
Uso linguagem direta, meio rude, que não é minha: virgindade não se tira. Mas sei que ao ouvir tal palavra vai parar seu gesto ao meio. Ficarei imóvel também, aguardando a decisão da suprema corte que lhe habita o coração. Que lhe agita o coração. Mil dragões e anjos em luta no labirinto em que sua cabeça se transforma. Verei no espelho o movimento da sua garganta engolindo em seco alguma coisa. Verei tudo o que for possível ser visto no instante que pode ser meu último. Tentarei ver o brilho suspenso da velha navalha refletido no espelho, como farol de uma ilha perdida orientando náufragos de um amor que sobe à tona.
E continuo:
— Foi ontem, Senhor, no luar prateado de ontem à noite, as estrelas por testemunhas — foi ontem que amei sua filha Silene...
Esse, o momento!
Esse, o absoluto momento que quero viver. O fio da navalha! Um momento em que minha vida estará pulsando nas mãos indecisas de outra pessoa, nas mãos do homem que é o pai da inocente futura mulher que eu hoje mais amo no mundo. E que talvez não consiga compreender minha atitude.

— Por que você diz isso agora? — perguntará ele.
— Para se fazer justiça, meu senhor.

E ele ali, meio perplexo, a navalha meio cega suspensa por meus olhos, seu indicador apontando um lugar imaginário no meu queixo branco de espuma, a jugular clamando gumes.

Lembro de Silene, com vontade enorme de beijá-la e lhe dizer: “Ontem à noite, enquanto os relâmpagos penetravam insistentemente pela janela e faziam teus olhos brilharem de prazer, eu cheguei a desejar: que os deuses te protejam da minha ousadia — mas nunca do meu amor.”
Um mosquito pousa na minha testa.
O vento balança um bilhetinho pregado com durex na moldura do espelho, ao lado de uma velha propaganda do Maluf.
Um cachorro late lá na esquina.
Uma criança passa correndo atrás de um gato.
Vejo que a navalha não tem fio: tem uma linha de raciocínio. Respiro cuidadoso, como Bergman em noite de verão me dirigindo. Crepitam gravetos e coivaras no meu peito, meu pulmão direito agora muda de lugar e o esquerdo se tranforma em suspirante coração.
Continuo dizendo, calmo:
— Ontem à noite Silene não foi à escola: fomos à minha casa. Ela aceitou meu convite pra jantar. Tomamos vinho, olhamos a lua, ouvimos música, dançamos...
Em voz baixa, vou lhe dando mais detalhes.
Conto tudo. Até falo dos relâmpagos.
É um duelo informal de cavalheiros: eu entro com a história — ele, com o silêncio. Eu entro com a garganta e as emoções — ele, com a faca e o risco. Eu entro com a dor; ele, com a filha.
Sinto que me olha sem piscar.
Mudo.
Minhas mãos pousadas no descanso da cadeira.
Esse é o momento.
(Vai ser assim!)
Porque o Paraíso não pode ser lugar de gente morta.
Há que ter risco.
— Risco, navalha, tempo, garganta, mulher, emoção.
Tudo por um fio...


Mas agora uma garrafa de vinho pela metade, rosa vermelha ansiosa por mim, três ou quatro velas azuis em castiçais de prata espalhados pela sala, uma penumbra gostosa onde sombras delicadas dançam por si mesmas, o Bolero de Ravel crescendo em todos os sentidos no meu peito apaixonado, uma brisa noturna e encantada entrando pelas portas e janelas. Mistérios no ar, desejos, também. Às vezes, silêncio: e Ravel retorna.
Espero uma das outras minhas amadas.
Se ela chega, agradeço a Deus por ter chegado, e nos amamos da forma mais gostosa. E se não chega, agradeço a Deus por não ter vindo, e continuo a me amar da mesma forma. Não faz diferença se danço com você, ou se sozinho: amo as duas coisas, e a dança sempre acontece primeiro dentro de mim. No fundo, sempre agradeço a Deus por você vir, e agradeço mais ainda se você some por uns tempos. Quando você desaparece, meu amor, o espaço que você deixa é enorme: e então procuro ocupá-lo de modo diferente, pois cabem dez outras dentro dele...
Olho para meu corpo como se olhasse a própria Natureza.
Um pedaço dela — o mais importante e o mais belo, concluo. Quando passo as mãos em mim, é como refinasse uma escultura, cobrindo-a de amor e de ternura.
Eu — meu alimento!
Quando me toco ouço música. Vibrante.

Não tenho uma vida só, eu tenho muitas. Todo dia, ao levantar, escolho uma delas pra viver. E são todas perfeitas, porque livres. À noite, quando venho dormir após extensa jornada de amor, guardo em mim essa vida que hoje vivi — e vivo-a de novo. Sou garimpeiro de sonhos remexendo cascalhos de amor. Se vou mudar esse jeito louco de ser, nem Deus sabe. Eu acho que não.
— Se você não acredita, é melhor parar.

Hoje me espanto ao ver que essas coisas que se transformaram em mim já existiam — separadas — e só se uniram para formar-me. E que outras continuam vindo para tornarem-se-me. Que inteligência será que as conduz até mim? Por que será que me escolhem? Ou por que é talvez que aceitam o convite para que venham a constituir-me dessa forma tão gloriosa e cativante?
Onde andará hoje essa mulher, que ainda nem conheço — mas por quem vou estar apaixonado semana que vem?
Continuo perguntando como se fosse alpinista:
— Posso ver tua pequenina montanha, meu amor?
— Sim — ela responde.
"Eu sempre digo sim, quando você me fala de amor".
Então levanto delicado o azul de sua saia, clarinho, passo as mãos por suas coxas, sinto a penugem que lhe cobre a pele lisinha, firme, e vou subindo, subindo, subindo. A calcinha é preta: surpresa para mim. Adoro surpresas. Imaginava que fosse bege. (Essa é uma das vantagens dos amores passageiros: a gente nunca sabe a cor da calcinha que ela veste.) E vou subindo mais ainda minhas mãos nessa escultura de carne, sangue, tesão e arrepios.
Sussurro: — Que maravilha...
E ela, como penteasse delicada meus cabelos com os próprios dedos abertos, sorrindo, sentada na cadeira branca:
— Você é o amor.
Noto que ela não disse: “um amor”, e sim: “o amor” — e frisa (demoradamente, eroticamente, lascivamente) o artigo definido, masculino, singular. Mas não será agora que vou lhe ver a deliciosa colina. Vou deixar para depois, outro dia, quem sabe. Talvez nunca. Porque a mim me interessa mais a permissão que ela deu. Basta. Eu sei que amanhã talvez, na cama, numa posição mais confortável, vou lhe tirar a calcinha puxando-a com meus lábios evidentes. E vou então poder observar-lhe o clitóris, sua cor, sua textura, seu tamanho, volume, gostosura, freqüência, pulsações por segundo, essas coisas.
Amanhã... talvez.
Ou talvez nunca — porque nunca tenho pressa.

Hoje, hoje eu só quero tocar o clitóris da própria vida.

A seu tempo, tudo se resolve.
Só somos o que somos porque fomos o que fomos.

Nesta manhãzinha que chama Iracy, sol brilhante em céu azul, tomo café como pão comesse, me alimento das lembranças, belas, fortes, delicadas. Na fumaça do café sinto-me oráculo, e vejo que a realidade é arbitrária. Tenho vontade de buscar o crânio do meu pai no cemitério, para conversarmos todos os dias, dizer-lhe que agora o amo muito, mas que ele não soube tratar mamãe como ela sempre mereceu. Escrevo, divago, e digo: os poetas seremos eternamente incompreendidos. Porque nós vemos a coisa e seu fundamento, e as pessoas normais só vêem a coisa e sua utilidade. Nós vemos o todo poético de um universo dançante, e os normais só vêem a parte seca de um mero processo. Nós, os poetas, brincamos com as palavras; os brutos fazem delas uma arma.
Para nós, as palavras são flores; para eles — punhal.

Oscar Wilde me cutuca com sua varinha recoberta de cetim e cita-me uma bela frase — que eu mesmo escrevi:
“Nada deve ficar acima da liberdade, nem mesmo a verdade”.
De profundis.


Por isso, Dorian, nunca deixarei de ser jovem: há minas no meu peito enluarado. Mesmo quando tiver mais idade, serei um véio de ouro, sorteiro, e as garimpeiras de amor sempre vão querer encontrar-me entre os cascalhos. Morarei no interior. Abandonarei a Stoli e os frutos do mar; trocarei o Baron D´Arignac por caipirinhas deliciosas. Mas, em nome de Vênus, o erótico Lúcifer continuará descobrindo, todo dia, as minhas doces, indispensáveis, e adolescentes Madrugadas.
Então, que Deus me perdoe, e que você me compreenda. Porque o Lúcifer a que me refiro neste blog é aquele da primeira fase, quando ainda era um anjo — o belíssimo Anjo da Luz. O brilhante intelectual contestador. E Dorian é o irretocável Retrato de Oscar Wilde. E as Madrugadas, são estas que agora vivo — entre flores e estrelas.

“Todo excesso, assim como toda renúncia, transporta consigo a sua própria punição” – como disse Oscar Wilde.

Quando a verdade for triste, minta com alegria.




Dentre os meus inimigos, o maior deles chama-se Medo. Ele me ataca pelas costas alguns dias. Portanto, preciso acelerar o acontecer das circunstâncias, tenho que aumentar o tamanho, a importância, a freqüência e a velocidade dos fatos que me circundam, trazer Deus em pessoa para jantar aqui comigo às vezes, tomar vinho com Ele, inundá-Lo de carinho, gratidão e Henry Miller.
— À luz de velas!

Como já disse, Deus sempre foi generoso comigo, mas não posso condicionar o meu galope ao Seu trote. Tenho que resistir aos ataques da mediocridade quotidiana que me cerca, e me afastar da jacarezada. Tenho que encher de glória os buraquinhos que os ratos pensam fazer no pão da minha existência. Preciso reagir, tornar-me ainda mais subversivo, abandonar as hienas, jogar fora tudo o que não presta, refinar as relações, multiplicar o que me eleva.
— Você não gasta muita energia com isso, Paritosh?
— Ou será que as energias que fui perdendo pelos caminhos da vida, aparentemente à toa, em verdade não me ajudaram a ser o que sou? Será que, no fundo, aquelas perdas não aconteceram com um propósito, qual seja o de me deixar um saldo suficiente só para ser gênio? Será que se eu não tivesse perdido aquele tanto o que hoje me restaria não seria talvez mortal pelo excesso?
Fico pensando. “O principal sobrenome do amor é ilusão.” Eis a razão por que não conto os meus amores — pois me perderia num grande número. Meus amores serão sempre “incontáveis”.

Faço agora um juramento:
— Se eu tiver que um dia me desfazer de todos os meus bens, a liberdade será o último deles.

Quanto ao que penso sobre o amor, disse quase tudo a Edma Lux no seu livro “Perguntas que a mulher faz quando sonha”. Devo deixar claro, entretanto, que valorizo um amor não só pelos prazeres que posso ter ao seu lado, mas principalmente por aqueles que deixo de ter por causa dele.
Já me casei quatro ou cinco vezes — mas “casamento de artista”, ou seja: sem documento, sem cartório, sem igreja. Porque o importante não é o papel que se assina, mas o papel que se de-sempenha. Portanto, continuo solteiro e, embora às vezes meio casado, continuo dizendo que o casamento é o túmulo do amor. Às vezes, por mera curiosidade, posso até entrar num túmulo, mas jamais permito que cimentem a lápide por sobre mim. Por isso é que felizmente já me separei umas seis ou sete vezes.
(Não ligue: eu sempre me separo mais vezes do que me caso.)

No fundo, o casamento é uma velha escola em ruínas que só tem duas matérias: sadismo e masoquismo.
(Dos dois lados.)
Casamento indissolúvel, então!, é pior do que prisão perpétua. Quando cometi a besteira pela segunda vez, pensei: “Meu coração está de luto: minha liberdade foi de novo assassinada por meu amor.” Mas eu sempre me salvo descasando.

Porque o túmulo da minha liberdade será o túmulo da minha própria vida!
Se acaba uma, morre a outra.



Vocês discordarão de muitas coisas que aqui vão ler. Afinal, cada um de nós tem seu próprio tempo, seu sistema de valores, sua própria maneira de julgar um fato, analisar fenômenos, encontrar saídas. Cada um de nós tem sua particular visão do mundo — intransferível, única, exclusiva. Cada um de nós tem suas idéias de verdade, de justiça, de amor, de religião.
Cada um de nós tem seu próprio modo de se salvar.
(Ou de se foder...)
Cada um de nós é um ser único. Mas interagimos em nome de uma filosofia, de um negócio, de um deus, de um projeto, uma causa. E há certos atributos que nos elevam à categoria de humanos: a inteligência, o amor, a criatividade, a compreensão, a espontaneidade.
E, principalmente, a Liberdade.
Isso é que deixa a vida fascinante.
A vida que merecemos viver só depende de nós.
Singularizo você para deixar mais forte a chamada: Quero que você abandone as verdades recebidas por herança ou por contágio, e passe a pensar com independência. Se chegou até aqui (não só neste livro mas na vida), é porque você deve ter aí na cavidade do crânio uma parte do sistema nervoso central chamada encéfalo — que abrange o cérebro, o cerebelo, pedúnculos e coisas que nem sei. Essa máquina sensível requer cuidadosa manutenção, precisa de oxigênio, carinho, tempo, leitura, dedicação.
Não permita que joguem lixo no teu cérebro.

Lembre-se para o resto da tua vida: Nada de verdadeiramente grandioso foi criado até hoje na história da Humanidade, sem paixão, ousadia, inteligência, loucura — e liber-dade.

E eu só entendo a liberdade como liberdade de mudar de vida.
(Qualquer outra que não essa será pouca.)
Por isso, reaja!
Mude.
Mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade. Vou te mostrar novamente uma parte do poema:
Mude!
Veja o mundo de outras perspectivas.
Experimente a gostosura da surpresa e a delícia do inesperado.
Descubra novos horizontes.
Seja livre até na forma de pensar.
Desperte o aventureiro que hoje dorme no teu peito.
E se não encontrar razões para ser livre — invente-as.
Seja criativo.
Só o que está morto não muda.
Como você pode perceber, até o “Mude” eu mudo sempre. Por isso é que fiz várias versões desse poema.

Até Clarice ficou mais famosa com o meu “Mude”...
Edson Marques Desafiat Leo Burnett!

Mude: Mesmo que você já tenha encontrado seu melhor lugar na vida, procure outro. Se ainda não achou o melhor caminho, continue procurando-o. E após ter certeza absoluta de tê-lo en-contrado, ainda assim procure outro. A pior coisa da vida é a estagnação — não pare nem mesmo quando estiver no pico que você suponha ser o mais alto. Porque sempre será possível ir além.
E mais além.
A vida tem milhares de caminhos possíveis: Reaja!

Qualquer futuro é melhor do que qualquer passado.

Apaixone-se, como se fosse um Picasso. Apaixone-se por um monte, por uma montanha de coisas gostosas — ao mesmo tempo. Por muitas pessoas ao mesmo tempo. Porque assim, se um dia você talvez perder algumas delas — ou suspender por certo tempo a paixão por qualquer uma — não te preencherá o peito aquele indefinido sentimento (que os poetas adoram, mas que os mortais comuns detestam) chamado Solidão.
Fico pensando — a mil — no que me diz Contardo Calligaris: “Quem muda de parceiro sem mudar de neurose vai ao encontro das mesmas pauladas...” Ao que lhe respondi: “Toda grande história de amor acaba em pancadaria”. E nem sempre pancadaria emocional...
Há certezas que dispensam comprovação.
Por isso eu digo: brigar comigo, e vencer — são coisas contraditórias, mutuamente excludentes. Há que se escolher só uma delas. Na maior parte das vezes, nem eu mesmo consigo me vencer. Viro um Deus quando me armo de fúria e perdôo quem me ofende. Porque Deus está inteiro dentro de mim — e fúria é apenas o nome de um silogismo. Quando se trata de uma história de amor, e não apenas, todo processo deve ter três instâncias básicas: verificação, avaliação e julgamento. E só depois, conforme o caso, condenar ou absolver. Mas algumas pessoas não passam pelos estágios racionais, e condenam logo de cara, sem considerar a presunção da inocência. Certas pessoas não se preocupam com a própria reputação intelectu-al.


Continuo pensando.


Que nessa minha busca, nessa minha incansável e eterna busca de caminhos, eu acabo às vezes me afastando de você. E esse espaço, essa distância, esse vazio, é como uma navalha cortando a emoção.
A emoção não pode ser cortada, eu sei.
Mas, o que se há de fazer?
Eu quero apenas abraçar a metade do infinito!
— Simplesmente.
E não quero ser vítima de urgências massacrantes absurdas. Minha liberdade necessita de ar puro, de harmonia, de entusiasmo.

Quando minha alma for mais acomodada do que louca serei o primeiro a deixar de me amar.



Você diz que meu amor não te dá segurança, e eu sei que não dá. Acontece que segurança, certeza, estabilidade — essas coisas você só consegue em relações mornas, cinzentas, tradicionais, medíocres. Não, comigo não! O meu amor será sempre livre, aberto, instável, incerto, inseguro, porém sincero, verdadeiro e louco — maravilhosamente louco.
O meu amor sempre terá a duração de um relâmpago — mas também terá sempre o brilho de um relâmpago.
Eu dizia tudo isso mas ela não me ouvia.
Ela esperava mais...
E dessa espera faz-se a crença, nasce um grito, morre o medo. Dela não brotam vazios, nem consolos, nem tormentas. Dessa espera, porém e finalmente, não se foge. Há um caminho que nasce nos meus sonhos e acaba no infinito. Por que você não anda por sobre ele? Há excesso no ocaso intempestivo, há desvelo no lugar de nos perdermos, há desculpa no sucesso interrompido, há saudades na cabeça do meu pai. Há desejo no excesso que se perde — e mistério no interior da coisa feita. Sinto como se um barco vermelho e solitário navegasse anônimo nos mares do meu peito ensangüentado.


A mim não me bastou ser adivinho: eu queria ser profeta.
E consegui.
É a vida — você sabe.
Acontece que a morte é também um cavalo que trota encilhado ao lado da gente, e nos olha por baixo do tapa, convidando.
Sempre recusei:
— Morrer é a última coisa que eu quero fazer na Vida!

29.3.02

“Sinto que você conquistou meu coração como se conquista um território. Também por isso eu acho melhor que nosso amor seja forte, intenso e brilhante, como um relâmpago — mesmo que dure pouco, mesmo que acabe logo — do que ser uma simples luz de vela se arrastando, desesperada, fraquinha, trêmula e monótona, por toda a eternidade.”
Eu penso essas coisas como se as dissesse ao meu amor.
Sei que sou um caçador.
Mas não penduro na parede da sala as fotos dos meus amores como fossem troféus de caça. Porque são elas as feras que me caçam, me conquistam, me dominam, me mordem, lambem, acariciam, me amam. Só não permito que se acasalem comigo. Assim como pintores precisam de modelos, também escrevo melhor quando as tenho à vista, nuas, puras, belas — todas. Às vezes, acho que já não mais escreverei coisas tão novas, mas logo em seguida mil idéias fervilham na minha cabeça flamejante; no coração, sentidos pululam como rãs embriagadas de amor; nos olhos, ima-gens dançam coreografias revolucionárias criadas por Martha Graham; de minhas línguas surgem novas palavras grávidas de encantos que se dão à luz.
Então escrevo, e escrevo de novo. E de novo de novo. Liberto meus neurônios de uma prisão chamada fé. Meu único princípio é não ter fim. E as palavras se oferecem, prostitutas, para mim. Caem no meu colo, lúbricas, doces, inocentes. Caem na minha boca, dançam na minha língua — e em todas as outras. Se derretem por mim quando preciso delas quentes para falar de amor, e vêm geladas e cortantes se preciso contar tristezas. As palavras, todas, se oferecem para mim, obscenas e santíssimas ao mesmo tempo. Divinas e profanas — como falo. Então as escrevo, profundas, belas, insensatas, radicais, libertadoras.
Por isso há tanto lirismo na minha obscenidade.
— Tanta realidade na minha ficção.
E tanto amor nos meus amores...

Sou bom, tenho boa índole, tenho amor no coração. Mas alguns imbecis confundem essa minha bondade com fraqueza. E a esses eu faço questão de ferrar. Quando eles menos esperam.


A realidade é um produto da imaginação. Mas a história que vou contar é a mais pura das minhas verdades. Vou relatar o que vi com esses meus olhos do amor, descrever como tudo aconteceu. Se algo fugir do real, será mais por falta de lembrança do que de caráter. Sou um anarquista lúdico. Anarxista. Claro que alguns dias por semana, algumas horas por dia, represento um papel: me transformo em operário, chego manso ao escritório, macambúzio, cabisbaixo — feito um idiota. Represento tão bem esse papel no palco da hipocrisia cotidiana, que as pessoas pensam que sou mesmo responsável.
Mas, por dentro, continuo rindo de tudo — e de todos.
Portanto, não me peçam para sofrer.
Não tenho complexo de mártir.
Sou só um santo louco, gozador, inconseqüente, com enorme vocação para ser um Deus-palhaço — nada mais.
Na verdade, até que sou bastante responsável.
(Só que não levo a responsabilidade muito a sério.)

Deus adora o porra-louca, por isso lhe dá tanta alegria, tanta graça, tanta energia. Deus não consegue amar os que são sérios — e por isso os faz tão tristes. Deus gosta muito de brincar. O próprio Mundo é seu maior brinquedo. Lembre-se:
— Quanto mais sério, mais longe de Deus!

Pense no que eu digo.

Porque sou um frasista inveterado. Às vezes crio uma frase meio tola, como esta que pensei agora: “Tem gente que come merda e nem se preocupa com a procedência.” É de Wittgenstein, se bem me lembro, a frase: “quem não for capaz de escrever de vez em quando uma tolice, jamais criará uma obra prima”. Gosto de aprender uma coisa nova por dia. Mas se eu tivesse aprendido uma palavra nova por dia, desde que nasci, não saberia hoje nem 20.000 palavras diferentes. Como vemos, isso não basta. Um escritor deve saber pelo menos 50.000 palavras na ponta da língua em que escreve. Para um idiota, bastam mil. Presidente de cooperativa se vira com cento e vinte. Mas um pedreiro deve saber cerca de trezentas — incluindo-se aí tijolo, pedra, areia, marmita, cascalho e Corinthians.
Shakespeare sabia apenas cinco mil palavras diferentes — mas eram todas as que haviam no inglês daquela época.
E você — está pensando em ir além?
De minha parte, só quero ser inconseqüente — se possível.

Ao cometer uma loucura devemos pensar sempre duas vezes: — ambas depois da loucura já feita.

Ainda é cedo para decidir a quem vou deixar o meu além.

No Upanishad, escrito talvez no século VII a.C., lemos que Além é “aquilo que as palavras e os pensamentos não alcançam”. O que não foi, de nenhuma forma, nomeado — o transcendente.

Portanto, quero sempre o novo, o novo absoluto. Enquanto vocês engessam seus braços fechados, procuro abrir mais ainda meus braços abertos de amor. Só me dão prazer as amizades eró-ticas: por isso tenho tantas amigas. Amizades masculinas, machas, não sensuais — com essas eu só desperdiço meu tempo. Tenho pouco interesse em ser amigo de alguém que não posso amar de alguma forma.
É disso — só disso — que trato nos meus livros.
Da Gramática do Amor.
Le livre de la Liberté!
Se você não gosta dessas coisas não será nunca meu leitor.
Minha literatura propõe uma prática de Liberdade.
Eu só falo de amor — de amor livre!
(E se você não gosta disso, é melhor começar a gostar.)

O amor tem que ser livre em todos os sentidos. Mas para você isso é impossível; você é contra o amor livre.
De novo te pergunto:
— Se o amor não pode ser livre, como deve ser então:
“Amor preso”?
Amor acorrentado, amor encarcerado, sufocado?
(Seria contraditório.)

Se não rompermos os limites que alguns dizem existir, nunca atingiremos a felicidade. A felicidade está sempre além de algum limite imposto a nós — nunca antes dele.
Acontece que no caminho da vida há circunstâncias que eu mesmo crio por ser livre, e outras que me caem na cabeça como se fossem um manto espesso. Ao aceitá-las, as que crio e as que outros criam para mim, acabo tornando-me o único responsável por elas todas. Ou seja, sou cúmplice do que me ocorre. Há uma vasta teia de relações que mantenho, milhões de papéis que assumo e desempenho — alguns agradáveis, outros não. Quando, supondo-me livre, não reajo no sentido de escolher apenas as circunstâncias agradáveis; quando, supondo-me livre, continuo mantendo certas relações que me oprimem — sou o único culpado, o único responsável por isso.
Nesse caso tenho mesmo que ser punido.
Agindo assim mereço sofrer.
Não será esse também o teu caso?

Temos que ler os sinais que a vida nos dá — e entendê-los.

Quando eu era pequeno brincávamos de ver nuvens no céu de Srinagar. Meus amiguinhos só viam bois, cavalos, elefantes, man-gueiras, copos de leite. Mas, nas mesmas nuvens, eu via elefantes enfeitados com safiras dançando sobre tamboretes de ouro em pica-deiro de circo; via Bonaparte empunhando sabres num cavalo branco; via uma mulher descalça, vestidinho de chita, carregando um pote de água pura na cabeça; via um miura com quatro banderillas espetadas no lombo ensangüentado; via a Vênus de Milo de ponta-cabeça...
Eu via coisas que os outros não viam.
Até hoje ainda olho para o céu e vejo coisas que nem posso contar, de tão lindas, encantadas — maravilhas que nem conto!
Vocês não iriam mesmo acreditar...
Pois fiquem sabendo:
Quer quando me contrariam, quer quando me enaltecem, — a mim não me interessam as opiniões analfabetas. Só me sensibilizam efetivamente as opiniões filosóficas — aquelas que nascem de processos criteriosos, altas reflexões. Sem distanciamento crítico, nada feito! Dito de outra forma: se não forem sábias, as opiniões sobre mim não me atingem de forma alguma — nem as favoráveis, nem as contrárias. Aliás, como poderia eu levar a sério opiniões desprovidas de fundamento? Assim como desprezo as opiniões críticas negativas infundadas, rejeito radicalmente os elogios superficiais.
E prefiro ser xingado por um burro a ser elogiado por ele.

Tem dias que eu chego ao trabalho e olho para os lados para ver se encontro um semelhante — mas só vejo insetos!
(Com duas ou três exceções.)

Pois, é.
Duas coisas são básicas na formação do ser humano: pensar rápido — e enganar autoridades. Como eu era pequenino por fora, fisicamente fraco, economicamente dependente, tinha pai autoritário — fui obrigado a pôr asas no meu cérebro. E aprender a jogar. Já vem daquela época esse meu poder de enganar “autoridades”. Do inspetor de alunos ao juiz da moral; do síndico do prédio até a polícia rodoviária, passando pelo padre e pela zelosa mãe de uma lolita. Em matéria de amor e liberdade, engano todos. Engano até mesmo essa mulher ciumenta que hoje dorme ao meu lado e pensa que é minha dona.
E se eu tivesse patrão, chefe e professor — enganaria os três!
Mas nada tenho a esconder. Até teria, fosse medroso. Exceto uma vida livre em todos os sentidos, nada que me obrigue a receios. Uma adolescente aqui, outra acolá; um bacanal de vez em quando, vinho, flores. E literatura. E fazer amor com duas mulheres ao mesmo tempo, também de vez em quando. Só isso. Nada a esconder, tudo declarado: não sou gay, não sou ladrão, não uso drogas, não sou nem cristão, nem judeu, nem nazista, nem pobre, nem rico, nem velho, nem muito feio, nem muito preto, nem como muitas criancinhas — não sou burro. Nem muito comunista sou mais.
E vivo extremamente bem — na praia. No sol.
Descoberto, nada a esconder. Vivo como rei, numa cobertura com vista para o mar. Mas nem sempre foi assim. Quando cheguei a São Paulo eu era pobre — muito pobre. E pobre vive fazendo conta só pra ver se o dinheiro estica. A pobreza é a maior e mais terrível forma de opressão. Eu mantinha um rigoroso diário financeiro, letras minúsculas, um personal cashflow. Tenho vontade de rever uma daquelas fichinhas caprichadas, dobradinhas, cuidadosamente guar-dadas na carteira, onde eu descrevia o que gastei e de que forma: guaraná Antarctica, pipoca com queijo na USP, duas passagens de ônibus, o jornal, duas entradas no Cine Belas Artes, um chocolate, pizza brotinho na madrugada Xangai do Parque D. Pedro, sabonete Lux, O Grau Zero da Escritura no sebo da Aurora...
Era uma pobreza impressionante!
Só lamento ter perdido as “Recordações da Casa dos Mortos” porque o dinheiro não deu. Fiquei com o livro na mão quase uma hora, esperando acontecer um milagre na Avenida São João. Depois fui dormir com Dostoievski, imaginando o seu romance. Meu quarto na pensão aquela noite parecia uma Sibéria, e eu só tinha um corta-febre me cobrindo de frio e de agosto. Minha barriga roncava. Havia um envelope sobre a cama: uma carta da Eloisa sempre me trazendo recordações da casa dos vivos. Dentro do envelope, uma história de amor e dois selos para a resposta. Eu lia chorando. Aquele tempo, toda noite minha barriga roncava — e tantas vezes dormi com fome “que por pouco não jantei o miolo do travesseiro...”
Ou seja: nada tenho a esconder.
Mas se você quer mesmo me criticar vai ter que esperar.
Tudo tem o seu tempo.

Por falar em Eloisa, anos mais tarde, em 2008, eu publicaria no meu blog Mude o seguinte texto:

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