28.2.10

184 orgasmos

O primeiro clitóris que toquei foi o da minha mãe quando eu nasci. Ele brilhava só por mim, como a própria luz imaculada da virgindade: era como um sino no alto daquela catedral de amor por onde entrei neste mundo de delícias. E naquele momento, ao ouvir as mil badaladas, já senti que o meu destino era sorrir. Era um sábado de primeiras alelúias, e eu amei chegar como cheguei: meu primeiro orgasmo já foi cósmico. Gozei cento e oitenta e quatro vezes sem parar: aquilo não era um parto natural, era uma partitura: minha mãe não gemia, cantava, e eu não era apenas um bebê normal que nascia de um corpo humano, mas uma sinfonia em sol maior que floresceu a partir de uma semente divina, colorida, entusiasmada.

27.2.10

verdade x mentira



A longo prazo, falar a verdade custa bem menos do que mentir. A energia que você gasta falando até mesmo as verdades um pouco mais doloridas, chocando eventualmente esses espíritos despreparados para o sublime, e suportando as conseqüências que podem ser graves, essa energia acaba sendo muito menor do que aquela de você gastaria para suportar, nos dois principais sentidos, uma relação morna e desgastante, baseada na mentira e na dissimulação — e por isso mesmo quase sempre insuportável. Sei que às vezes você, de alguma forma, quer manter uma relação qualquer, que parece importante, e precisa mentir para que ela não se quebre. Tudo bem que assim seja. Mas, é preciso questionar até que ponto vale a pena manter uma relação que não permite livremente a existência da verdade.



Sobre isso — e sobre amor, poesia e loucura — ficamos hoje conversando, eu, Denise e Dryade: duas deusas gregas que eu conheço. Entre flores e estrelas e copos de vinho branco. Nós nos conhecemos por acaso. Às vezes tomamos vinho, outras vezes, margaritas... Mas na origem está
Giulia, a menina mais inteligente e bonita que já vi em toda minha vida. E antes de Giulia existem outras causas, todas impressionantes. O destino é uma deliciosa sucessão de acasos. Aliás, estou escrevendo um livro chamado Teoria do Acaso. Depois eu conto mais...

26.2.10

Esperança

A Esperança é um mal, segundo a Caixa de Pandora da mitologia grega. Pois, ao compararmos o cotidiano massacrante de hoje com uma situação ideal futura, somos tentados a considerar o futuro melhor do que o presente. E como há necessariamente em nós a tendência em preferir "o melhor", somos então levados a desprezar o hoje visando um gozo futuro de algo que supomos será melhor. E mesmo que o hoje possa ser bom (motivo pelo qual já deveria ser gozado com profundidade), passamos a aguardar o ideal, que é por isso mesmo melhor, mas que ainda não veio, e ainda não é. E talvez nem mesmo chegue a vir a ser.

Algo que pode agravar esse quadro miserável de absurdo desprezo pelo hoje é, de certa forma e em algum sentido, a possibilidade de reduzirmos voluntariamente ainda mais as qualidades do hoje, visto que, confrontado com o belo prometido para amanhã, é uma insignificância — e como tal deve ser considerado. Portanto, se amanhã será melhor, não deverei me contentar com esse pouco que o hoje representa, mesmo que seja muito comparado com alguma situação anterior. Além de não me contentar com esse hoje, nem mesmo procuro aproveitá-lo da melhor maneira: abandono-o pelo amanhã virtualmente melhor. E posso até mesmo recusar o hoje, abominar o hoje — e trocar o hoje — pelo ideal que suponho vai existir amanhã. Isso é um erro.


Ainda vou continuar escrevendo sobre este assunto.
É o item 39 do Capítulo Acaso.

25.2.10

ajoelho e rezo



Todos os dias eu me ajoelho aos meus pés.
E rezo.



E me lembro da Vó Vitalina... e da Tia Ana.

Dê um click na imagem e leia o original do poema escrito por mim aos 17 anos (à máquina).

24.2.10

o tempo passa

Hoje é 29 de janeiro do ano passado. Chove forte nesta noite muita, relâmpagos riscando à faca o céu de alto a baixo. Entro inteiro na piscina, como entrasse na própria madrugada, e deixo que os pingos de chuva martelem meu corpo nu, que às vezes sobe à tona. Iluminado por uma luz brilhante que vem de cima, solto as gargalhadas todas que acumulei nas últimas horas. Há um desafio emocionante lançado agora por mim: que caiam no meu peito esses raios de absinto. Que me firam — se puderem — que me penetrem, me rasguem, me partam, me furem. Neste momento, neste exato momento, Deus rivaliza comigo no quanto de amor Eu sinto e no tanto de bom que Sou. Neste momento único criamos, Eu e Ele, muitas coisas incomuns. Um para o Outro — tantas, que até nos confundimos.
E se um de nós dois tiver que se foder — que seja Ele.
Amorosamente.


O tempo passa como não fosse agora, o azul infinito profundo salta sobre mim, e as laranjeiras em flor trazendo a infância de volta, doce, pedaços de Iracy dançando vagalumes no céu da minha boca. Lembro de Itararé e da primeira vez que retornei. Um corpo jovem cheio de ossos, desejos e emoções, carregava nas mãos uma pequena mala preta contendo seis meses de saudades, as roupas amassadas, algumas esperanças e um rádio-gravador Philco meio quebrado. Mal tendo o dinheiro da passagem de volta, ali na Rua São Pedro, naquela madrugada inesquecível, o comunista romântico, sentimental, com a barriga roncando a fome acumulada da véspera, caminhava ansioso, prestes a reencontrar os irmãos, o pai, a mãe e a história. Com lágrimas nos olhos eu era uma pessoa que chegava de longe — e tremia. Portanto, muito mais que dramatis persona em busca de choro, eu era em verdade um deus assustado em busca da origem.
— Só não sabia mais de que lado ficava o Olimpo.

23.2.10

coração jardim


O coração tem que ser livre, mas não livre como um táxi — que só está livre quando está vazio. Não me refiro a um coração vazio. Um coração vazio é muito triste... O que proponho, sinceramente, é que teu coração deve ser como um jardim: quanto mais flores você nele plantar, mais bonito ele fica. Basta que nenhuma delas seja carnívora, que nenhuma seja violenta, exclusivista, ciumenta ou possessiva. Basta que todas as flores convivam entre si, em harmonia, e que você ame todas elas incondicionalmente, sem apego e sem pressões.

Teu coração tem que ser livre como um jardim.



22.2.10

cinco pês

Nesta sociedade em que vivemos, são cinco as instâncias principais que nos oprimem. Algumas, por ignorância ou tradição; outras, por sadismo ou interesse; e outras nos oprimem simplesmente por "amor" — ou por um absurdo desejo de nos salvar à força. Mas todas, no fundo, só querem mesmo é conservar o mundo do jeito que está. Porque padecem de uma doença horrível chamada normose. Talvez até inconscientemente, pretendem matar os belos sonhos de liberdade que trazemos no peito. Pretendem manter-nos a ferros — e com as devidas coleiras e algemas.


Em português, essas "coisas" começam com a letra P:


— Os pais, o pastor, os professores, a polícia e o patrão. Se você não se livrar logo de todos esses pês, e de sua influência perniciosa e opressora, vai provavelmente segui-los de cabeça baixa pelo resto da vida — e ficar igualzinho a eles.


Ah! O homem casado acaba sempre arranjando mais um pê: o “p” de patroa...

21.2.10

Capítulo 37

Capítulo 37.

Vejo essas mulheres todas, almas nuas, tomando vinho aqui comigo, e me lembro dele, do grande deus da embriaguez. Então lhe peço:
— Paritosh, fale-nos de Baco.
Que ele prefere chamar de Dionísio, filho de Sêmele e de Júpiter.
(Não se espante: Júpiter fazia amor com todas.)
— Falemos então de Mitologia... — ele suspira fundo.
Senta-se na cadeira invertida e começa.
— Sêmele goza, mas quer mais, e pede que o Deus dos Deuses se lhe mostre em toda sua glória. Envolto em raios e relâmpagos, Júpiter a consome de uma vez. E assim, mergulhados no inexplicável da vingança divina, Sêmele morre de exagero, e Dionísio nasce por acaso.
("Faz tanto tempo, Mahatma, que já não me lembro bem dessa história", ele nos diz, tentando mudar de assunto.)
— Continue, Paritosh, continue, s'il vous plaît.
Ele toma um demorado gole de vinho.
— Júpiter, vocês sabem, nunca descuida de seus filhos. Manda que as ninfas, as musas, e Sileno, o velho bêbado, fiquem responsáveis pelo órfão. Dionísio percorre o Oriente com essa louca, com essa destrambelhada caravana poética, semeando a embriaguez do vinho, do amor, da alegria, das flores.
— Por onde passa, um "bacanal" - ouso interromper.
— Sim, por onde passa, um bacanal. Mas vai tanto para o Oriente que chega de novo à Europa, vai a Naxo, se não me engano, e se casa com a infeliz Ariadne (aquela dos fiozinhos), abandonada por Teseu.
Joyce Ann tenta falar, mas Paritosh lhe faz um gesto, e continua:
— O elemento central do culto a Dionísio é o teatro, a representação dramática. Dionísio quer que o celebrem, e quem se recusa a tanto, se fode. Lembrem-se: Licurgo, ficou cego; Penteu, rei da Trácia, dilacerado na montanha; as filhas de Nímias, transformadas em morcegos; e as mulheres de Naxo, enlouquecidas, a ponto de despedaçarem os próprios filhos recém-nascidos.
— Ou seja: os mortais não devem desprezar Dionísio — eu digo.
— Nem querer que Júpiter se mostre em toda sua glória — completa Joyce Ann.
— Sim. Dionísio era o deus da embriaguez feliz, do amor extático, mas também o Perseguido, o Sofredor, o Moribundo. "Deus do êxtase e do pavor; da selvageria bem-humorada, e da feliz libertação; um deus louco, cuja aparição leva os homens ao delírio". Os antigos davam-lhe a forma de touro selvagem: abundância de vida, fecundidade, loucura furiosa, quatro patas, chifre — e liberdade total. O deus da arte dramática, antes de tudo, é um deus de excessos, de paixão à primeira vista, poesia frenética, tesão absoluta, liberação vertiginosa de todos os instintos.

E as meninas começam a vibrar com a mitologia.
Fico pensando.
— Qual delas será hoje a primeira?
Sempre me perco entre o Esplendor e a Glória.
(Vou deixar que Júpiter faça a escolha por mim.)
Paritosh coloca o CD do Bon Jovi, Destination Anywhere, faixa 9, e volta dançando, feito louco. "Como pode um mestre tântrico gostar tanto de Jon Bon Jovi?" — eu me pergunto.

Lembro-me de que um dia lhe disse que o havia escolhido para ser meu mestre. Imaginei que fosse se sentir elogiado, mas ele, colocando as mãos em meu ombro, me disse:
— Edson, não é o discípulo que escolhe o mestre: — é o mestre que escolhe o discípulo. Não me siga, nem me persiga, nem me escolha. Algum dia — se for o caso — eu te escolherei para seguir-me. Eu te concederei, talvez, o sagrado direito de ser meu discípulo.
(Por uns tempos.)

Uma das Lolitas simula aplaudir-lhe a dança, e pergunta:
— Dionísio era uma espécie de Shiva?
Ele fica rebolando mais um tempo, de olhos fechados, como se não a tivesse ouvido. Dança, como se possuísse em si todos os demônios do paraíso. Então, arranca sua camiseta branca, e responde:
— De certa forma, sim. Shiva e Dionísio dançam. Ambos os dois são deuses bailarinos, mas Dionísio vai além: Dionísio toma vinho!
E abre mais uma garrafa, sorrindo para nós três.
(Com essas agulhas ele ia costurando as coisas belas da Vida.)
Beija o saca-rolhas que sua mãe lhe deu, e continua nessa linha.

(A noite será longa.)

Ele fala tanto, tanto, que o cavalo se assusta.
E eu sonho que imagino que sonho que imagino — que sonho!
Estou numa carroça, nu, daquelas cuja caçamba é funda, o cavalo, negro, furioso, seus pelos luzindo, os olhos quase saindo fora do tapa. A estrada é curva, como toda estrada que ascende em direção ao topo do mundo — onde qualquer Deus se sente um.
Deus da Palavra, aquele que disse que no princípio era Eu. E que seu espírito dançava por sobre as águas revoltas, primeiro momento em que o Caos tomava forma.

Quando chego, Deus fala.
E fala tanto, que o cavalo se assusta, de novo.
A estrada era curva, o topo era curvo, as palavras eram curvas, tudo era curvo — exceto o cavalo, que era Eu. E Deus fala tanto, que o cavalo se assusta, cada vez mais. Parece que todo cavalo se assusta quando vê — e houve Deus. Houve muito mais coisas, houve até uma deusa, duas, três, e seus olhos haviam.
Por isso mesmo, quase furam o tapa.
O cavalo sou meu!


Repito: Paritosh é para mim o que Lambert foi para Balzac.


Por toda minha vida, sempre busquei, e sempre encontrei; sempre vou buscar, e sempre encontrarei — companhia erótica feminina. Só por isso sou capaz de trocar essa coisa deliciosa chamada Solidão.



Mas, como eu ontem disse para Joyce Ann: minha cabeça é um arco tesudo, e minhas idéias, setas de amor e loucura que arremesso em tua direção. Não fuja delas — deixe que lhe furem de amor o peito. Há uma noite de luar e vinho em que hoje mergulho cego. Com a mão direita toco no clitóris de uma estrela, e com a outra seguro um copo imaginário. O álcool me deixa lúcido quando penso nela. Mais tarde escrevi de amor a declaração inteira. Porque o modo como um homem trata uma mulher diz tudo sobre como ele trata a própria natureza.
E vice-versa.


Assim falava Paritosh.

20.2.10

Henry Miller

"Quando um homem de verdade aparece, o mundo cai sobre ele e quebra-lhe a espinha. Só restam em pé pilares apodrecidos demais, Humanidade supurada demais para que o homem possa florescer. Basta que um homem se vista de maneira diferente dos seus concidadãos para ser motivo de desprezo e de ridículo. A única lei que é realmente cumprida é a lei da conformidade".

Henry Miller me disse essas coisas (e muitas outras) enquanto estávamos deitados lá fora, nesta madrugada, eu e ele, olhando estrelas e tomando vinho.

Se você ainda não leu Henry Miller, leia, pelo menos, a Crucificação Encarnada: Sexus, Plexus e Nexus. Ou o Trópico de Câncer. Ou a Sabedoria do Coração. Você nunca mais será o mesmo. Nem a mesma.

18.2.10

Capítulo 2 Solidão à Mil

Capítulo 2
A liberdade é fascinante.
E se você não me entende, é melhor parar.

Pois não preciso da tua Razão, eu apenas gosto dela.

Assim como você não precisa de mim, também não preciso de você. Isto deve ficar bem claro: nós nos adoramos mutuamente, e respeitamos a nossa individualidade. Só somos o que somos porque fomos o que fomos. Se você não me compreende, e tem alguma intenção de continuar lendo o que escrevo, terei que chacoalhar os teus olhos daqui. Vou abanar estas páginas ao vento. Vogelfrei.

Antes de continuar cantando piaf a minha história, vou te dizer uma coisa muito importante. Existem, em si, pardais em gaiolas, mas não aqueles que são naturais — esses não se deixam prender, e ninguém sequer pensa em prendê-los. Mas, existe um tipo de pardal que tem falsas plumagens, usa correntinhas, braceletes, anéis no dedo anular. Se esquecem de voar: pensam que as asas são enfeites que devem ser colados ao próprio corpo.

Esses se ferram, em todos os sentidos.

Às vezes — e pode ser o teu caso — descobrem que entram pouco a pouco numa gaiola chamada "fria".

E se descobrem livres só quando já estão presos.

Têm alma de pássaro livre, mas já foram colocados na gaiola. Reconhecem que de alguma forma se deixaram foder: esse o primeiro passo. O reconhecimento efetivo da própria situação miserável é o primeiro passo para superá-la.

Esse, o primeiro vôo.

— Vogelfrei, Edith, Vogelfrei!

Grite junto comigo, levante-se e grite bem alto e forte: “A partir de agora — e para sempre — inguém mais vai mandar em mim, exceto meu próprio coração!”

Repita essa oração todo dia.

Grite — nem que seja por dentro. Mas não se esqueça nunca de crescer, ficar forte — e romper com a gaiola. E com os donos da gaiola.

Liberdade não combina com nenhum tipo de grade — nem com nenhum tipo de dono. Vogelfrei, em alemão, quer dizer exatamente isto: Pássaro Livre.

Vogel ("fôguel") — frei ("frái") = Fora da lei.

Porque a lei encarcera o espírito.
A norma é o cabresto da criatividade.

Há uma guilhotina chamada relógio de ponto, e toda vez que você aciona a alavanca, é o pescoço da tua liberdade que se fere. Matar-se para ganhar a vida é a pior espécie de morte. No escritório, nossa imaginação não se enfeitiça, não sobe montanhas, não escala picos, não voa. Quando executamos uma tarefa, no escritório, na fábrica, nada de verdadeiramente grandioso se acrescenta à nossa vida. O mundo não fica nem um pingo melhor...

Por falar em escritório, às vezes trabalho num.
Mas ser diretor tem lá suas vantagens.
Por exemplo, quando atendo um desses advogados com nó na garganta, cheio de empáfia e falsas importâncias (principalmente se o coitado nem sabe que "doutor" é um título, e se acha o tal...); quando recebo esses clientes ávidos por tolas informações (que os coitados supõem fundamentais); quando vejo os gerentes todos em busca de tão pouco, em troca de quase nada, à cata de migalhas e posições, enaltecendo misérias e tranqueiras, acumulando detritos e miudezas; quando vejo essa correria absurda e sem destino, esse tumulto; quando vejo tamanha falta de poesia, tanta ausência de paz e de harmonia; quando vejo tudo isso, sinto-me Deus concedendo audiência a espíritos inferiores. Seguro uma caneta e, enquanto os ouço dizer tão profundas asneiras, encosto-a nos lábios, transformo a bic em flauta mágica e começo a melodia imaginária que me eleva e me enleva.

Deixo-os falando como papagaios ignorantes e viajo, entro em devaneio absoluto. De tempos em tempos, murmuro “hum-hum...”, ou “provavelmente...” Quando percebo interrogação no fim de uma frase que mal consegui ouvir, resmungo: “de certa forma, sim, mas traga-me detalhes...”

Ao final, sempre digo-lhes “Parabéns!” — e eles se vão, contentes, satisfeitos com as minhas opiniões, agradecidos pela atenção que lhes concedo.

E eu continuo tocando a minha flautinha bic...
Se você não entende — nem toca bic — é melhor aprender.
Definitivamente.

O Capítulo 2 continua: ainda tem os versículos... rs!

17.2.10

Joyce Ann

Logo de manhã, assim que abro a janela do meu peito e ouço pássaros cantando, já tomo a minha dose diária de fascínio — por mim e pela Vida. É por isso que, como o Mefistófeles de Goethe, em cada mulher eu vejo uma Helena de Tróia. Dizem que esse é o meu maior defeito. Mas eu acho essa a minha melhor virtude.



Ficamos conversando na sala, soltos, dois pássaros livres e surpresos com tamanha gostosura. Joyce: "clair de lune" sobre nós, cortina de luar atormentada por violar a tua sombra. Chazinho com fatias de laranja, vinho rubro, água cristalina, variações de Paganini nos deixando bêbados de amor por essa musa. Nalgum lugar do presente, o passado se mostra ao futuro. Apago as luzes para que ela interrompa a visão do Botticelli, e mergulhe no escuro de Beethoven. Um pedacinho delicado de chocolate voa em direção à sua boca, um sorriso de criança dança nos seus lábios indecisos.
Eine kleine Nachtmusik me faz lembrar que ela é hoje o único esplendor da minha vida. Herrlichkeit. Quarenta vezes ouvimos a sinfonia número igual de Mozart, e a quinta do Ludwig parece nove, de tanto que cresceu entre nós dois. Vejo em seus olhos um sono que ela diz que não sente, vontade absoluta de tocar-lhe os pés descalços, mas me contenho no meu canto e no meu grito.
Ao seu lado uma Lolita de trancinhas, cavalgando em pêlo um cavalo branco chamado Volúpia. Por último, vem Ravel derramando seu Bolero sobre aqui, e ela me diz que acabam de pousar em sua mente os prazeres carnais da vitória desejante.
Só me resta beijar-lhe as mãos, como se lhe beijasse os pés.
E levá-la, como se eu fosse.
Nossas noites estão apenas começando, Joyce Ann.

Chamo Kitaro com seus dois tambores, e fico pensando.

As mulheres que amo não podem ser tão belas ao ponto de excluir o raciocínio. E, caso o sejam, procuro reduzir-lhes a beleza com os meus próprios olhos — só para salvá-las de uma perda irreparável. Me lembro agora de Jeane, a feiticeira que tem um quê de Mim, o arquétipo da beleza exagerada. Alfredo me olha de dentro do aquário, dizendo que tem saudades dela. E me lembro da sorte que tenho, pois nem preciso ornar-me de fitas: a dignidade já me basta.
Treze: esse número exerce impressionante fascínio sobre mim, não pela idade que pode representar mas pelo número em si. O vento que me refresca é o mesmo que agita seus cabelos. Agita loucamente como se agitasse uma bandeira.
E meu coração sussurra, enfim: "ela veio".
— Treze anos.

E o bilhetinho aí de cima ela o fez pra mim certa vez que ficou em minha casa me esperando quatro dias...

Inocente anjo feito de paixões e olhos negros. Penugem de âmbar em pernas puras e mãos de seda que me agarram sem que saibam bem por quê. Só posso me apaixonar de novo: é a vida. Há corações inocentes desenhados no mármore da escada. Logo logo uma Lolita estará dormindo em minha casa, sozinha — no outro quarto. A palavra que ela me evoca é Ternura. Hoje eu me chamo Humbert Humbert. Batem de novo à porta: desta vez é o Sr Vladimir Nabokov que veio trazer-me a alma que de mim se havia perdido e vagava pelo mundo. A primeira coisa que faço é velar o sono dessa menina — à distância. Fico acordado a noite toda, posso ouvir até sua respiração encantada. Bem de manhãzinha, quase ainda madrugada, coloco Beethoven (Clair de lune, primeiro movimento, repetindo, repetindo) — e eu espero que ela se acorde naturalmente.
"Que música mais linda!" — disse-me alguns minutos depois, com carinha de sono e de anjo ao mesmo tempo.
Vibrei.
(Amo-a mais ainda por isso mesmo!)
O sol, o sol já se levanta outra vez. Cachorros cantam lá fora com sua voz melodiosa uma sinfonia de aus. E o silêncio absoluto começa a respirar os barulhos que estavam escondidos dentro dele.
Amanheço em mim como se amanhecesse só.
Mas amanheço muito.

Bolinhas de lembrança na boca que se abre me trazem o gosto do vinho que bebemos noite que passou. Minhas pálpebras vacilam, meus olhos piscam incessantes, como se aplaudissem o sol que se levanta, sangüíneo, entre nós três. Outra vez, distendo meus músculos de revolução poética, e me atiro de novo em seus braços — como se fosse um fuzil. Me atiro como se fosse pólvora.
E então peço à empregada:
— M., não troque os lençóis: foi neste cantinho da cama que ela encostou seu erotismo de musa. Não lave este copo: foi nele que tomamos o último vinho. Não tire nunca mais do banheiro aquela toalha azul clarinho, pendurada logo após o banho dela.
E então eu peço ao meu pai:
— Deus, não me tire do nariz o seu perfume, não tire dos meus olhos sua imagem, não tire do meu peito seu amor, nem me tire a vontade enorme que tenho de ser dela.
Me lembro de uma só palavra em alemão: Jungfräulichkeit.
A cada dia fico mais puro. Seu nome agora é Joyce Ann! Perto dela minha prudência perde a razão e meu espírito perde o fôlego. Como você pode perceber, sou fascinado por abismo; e o verdadeiro abismo é o que não tem referencial fixo. O abismo profundo, real — tanto pode ser para cima quanto para baixo, tanto para fora como para dentro. O verdadeiro abismo, este mesmo em que agora salto, em que já saltei, não é um lugar — nem a ausência de um lugar.
É um estado de espírito.
Sou fascinado por abismos, mas não por quedas.
Não é preciso cair, basta saltar — abraçado à vertigem.
Você sabe.

Sou as vezes meu escravo, outras vezes meu senhor. Como escravo não me obedeço, e como senhor não me domino. Cavalgo-me como se eu fosse meu próprio cavalo enclinado.
(Todos os hipócritas pensam que um dia venderei minha alma ao Diabo. Mal sabem, os coitados, que há muito tempo já comprei a alma Dele. As duas. E paguei à vista!)
Mesmo sabendo-o defectivo, flamejei meu verbo por Joyce Ann. A primeira vez que apalpei seus peitinhos quase morri de amor. Eu já havia feito massagem demorada na irmã de Juliana, e Joyce Ann nos assistia, delicada — interessante. Vejo dois olhos vivos, observando meus ademanes poéticos, românticos, dramáticos. Amaciei então com seda minhas mãos de creme, ajoelhei-me puro e gostosinho ao lado dela, e perguntei, braços levantados em posição de ataque:
— Posso?
— Sim... — respondeu como se já esperando por isso.
Pedi-lhe então que se deitasse no chão da sala onde havíamos dançado, apaguei as luzes, esqueci dos presentes e dos ausentes — e armei-me da inocência mais profunda que fui buscar dentro de mim. Levantei um pouco a blusinha azul, passei creme em sua barriga suspirante e mais ainda em minhas mãos. Deslizei meus dedos por toda aquela geografia de escândalo, inundei de branco e de pureza o seu umbigo. Depois, fiz mira no coraçãozinho dela e atirei poesias a esmo, como se fosse um arqueiro zen enlouquecido de amor.

— Sem limite, Joyce Ann?
— Hmm-hmm — nasalou a resposta, olhos fechados.
Jon Bon Jovi, no fundo, me dizia como se fosse eu: — It's Just Me. Me entreguei completamente! Quando voltei a mim, Simone, a irmã, nos olhava, perplexa. Fiz de conta que não era comigo, coloquei mais naturalidade ainda nos meus toques, mais creme e mais delicadeza em minhas mãos, e continuei. Com o indicador frente à minha boca respeitosa, pedi-lhe que mantivesse o silêncio na catedral do nosso amor.
— Shhh...
"It's just me".
Naquela oportunidade comecei a perceber que tudo passou a ser secundário. Everething but the girl. Joyce Ann, eco nasalado no céu da minha boca, carrilhão de gostosuras desdobrando para sempre a minha língua.
Milagroso óleo de Lorenzo que me cura e me procura!
Por isso, digo: Muito melhor é ser um trapezista cego voando a trinta metros de altura sem rede que lhe ampare se cair — do que ser um palhaço apenas que rola seu sorriso cansado pelo chão coberto de serragem triste.
Você sabe que a vida é um circo, cuja lona fica sempre aberta, escandalosamente aberta. Só não sabe qual será o seu papel.
(Nem se vai mesmo cair.)
A incerteza é que o sustenta no ar.
Eu, quando acaricio o corpo do amor, não quero ganhar nada — quero é me perder. Quando encosto o joelho no joelho da minha amada, também não quero nada — só quero me encantar outra vez com essa delícia inocente. Quando amo, não quero vitórias, quero me entregar. Em todos os atos puros de amor eu me dou, complexo, todo, imaculado. Coberto de inocência, candura e desejo.
Então posso dizer, sem medo de errar:
— Amo.
Não é nem um quarto inteiro que ela quer para si. Nem mesmo um armário todo, nem sequer uma portinha desse armário. Ela quer apenas uma gaveta onde guardar suas coisinhas, seus presentes, seus anéis, suas pulseiras, seus cartõezinhos coloridos, os bilhetes encantados que lhe dou, as poesias de amor que eu lhe dedico. Ela só quer uma gaveta onde guardar seus delicados objetos de ternura. Uma gaveta com chave onde possa preservar sua privacidade de menina apaixonada. Ela só quer uma gavetinha onde guardar o que sonha.

 Para sempre.

Portanto, vou agora transformar meu próprio coração em gavetinha, só para dá-lo inteiro todo a ela.

Capítulo 13 do livro Solidão à Mil.
Continua.



Dê um click na foto e leia a íntegra um texto que começa assim:


Cause My Joyce Will Go Ann: Outono, sábado, 22 horas, 51 minutos, 17 de abril, a pressão atmosférica ao nível do Mar Azul do Guarujá é de 759 mmHg. Ao meu lado uma prova de que a Natureza pode às vezes ser perfeita. Peso: 49,9 kg, altura: 164 cm, pressão arterial máxima sistólica: 118 mmHg; mínima diastólica: 68 mmHg. Pulso: 92,8 por minuto. Idade: quatorze. Nome: Joyce Ann.
(...)

Nesse link citado você poderá ver algumas fotos recentes dela, que não estarão no livro por questões técnicas.
Hoje, não-sei-quanto de já-eiro do ano passado, quero só ficar aqui, escrevendo, enquanto meu amor, descalça, lê num canto da sala — ambos imersos em distância e silêncio. Quero continuar vivendo com puro prazer essa solidão assistida, quero ter meu sossego sustentado por respeito mútuo e devoção recíproca. Mais tarde, talvez, nos daremos conta que somos dois, ambos desocupando o mesmo espaço infinito nesta geografia de amor. Então, nos daremos as mãos e nos amaremos de perto — de peito, de alma. Nos daremos de novo, de coração. E nos amaremos ainda mais — como se fosse possível.
Neste momento, escrevo à luz de velas, e Fernanda lê Alan Watts. Ao fundo, no outro canto, Jon Anderson seduz Vangelis.

Joyce Ann ainda não chegou da escola...
É a vida — e se você não a entende é melhor parar.

O desejo está na origem de todas as estrelas.
Quando tocamos o clitóris de uma delas, a noite escancarando de luar as pernas das estrelas abertas — isso é antes de tudo um exercício lingüístico amoroso e sideral. Amar um amor que já não amo é como defender uma idéia em que já não creio. Violentar a Razão — por qualquer razão — é um completo, é um terrível absurdo.
Assim como estuprar meu coração não me interessa.
(Nem a você deveria interessar.)
Sou capaz de colocar minha vida em tuas mãos se elas me tocam com amor. Por algum tempo, posso até me entregar, transferir minha alma inteira para dentro do teu corpo. Transformar-me num enorme coração apaixonado — e saltar no fundo mais profundo do teu peito. Mas, o poder de retornar continua sendo meu. Posso até dobrar um dia minhas duas asas, e deitar-me solto no teu colo.
— Mas jamais as cortarei!
(Asas demoram muito para crescer de novo.)
Eu sempre dobro minhas asas, em todos os sentidos. Às vezes, dobro-as como coladas fossem ao meu corpo, para facilitar a queda nos teus braços de ternura e romance. Outras vezes, por amor à Liberdade, dobro-as para poder ter quatro delas ao mesmo tempo.
E voar pra bem longe de você!
(Urgentemente.)
Aprendi a voar vários tipos de vôos, para toda ocasião.
Depois que tomei o verdadeiro gosto pela coisa, ficou muito mais difícil rastejar. Pouso às vezes, é claro — e tenho o poder de pousar onde quero, desde que o lugar, ele mesmo, não se esquive. A hora do pouso e quanto vai durar — sou eu quem decide. Se fosse diferente, nada faria sentido na vida. Nunca perderei a capacidade de levantar vôo, na direção que quiser, e pelo tempo que pretender.
Sou eu que determino as condições do meu vôo.
Não abro mão dessa prerrogativa.
Meu contrato é com o vento.
— Informal.


Jorge Luis Borges, pela delicada voz de Joyce Ann, me diz que a estação mais propícia à morte do amor é o passado. E que até as rosas e Aristóteles “também tiveram que morrer um dia”.

Mas ontem era domingo.

Um anjo voou sobre mim esta noite, derramou lágrimas no meu peito nu, sinal do seu amor, gotinhas de paixão por mim. Joyce Ann chegou a imaginar a morte levando-a daqui para sempre. Quem então apagaria a luz quando eu dormisse? Quem fecharia meu livro aberto caído na cama? Quem me cobriria no próximo inverno? Quem passaria tão delicadamente minhas camisas azuis? Quem seria capaz de amar-me como ela me ama? Quem me compreenderia tanto, tanto?

Então Joyce Ann chorou de novo, e mais.
E eu.
Isto são pedaços de um amor infinito e indespedaçável.

16.2.10

eklavya

Li hoje no Baghavad-Gita que Arjuna era discípulo de Krishna, e aprendia com um mestre de arco e flecha chamado Drona. De família real, o príncipe Arjuna logo mais seria Rei. Drona, o melhor arqueiro; Arjuna, o melhor discípulo. Mas, como em toda história zen, aparece o jovem Eklavya, um pobre diabo intocável, daqueles que quando sua sombra nos atinge devemos tomar banho. Drona, um brâmane, o recusa, pois não pode aceitar um sudra como aluno.
Eklavya vai então para o fundo da floresta, constrói uma estátua de Drona, e treina sozinho em frente a ela. Logo sua fama se espalha: "há um arqueiro melhor que Arjuna". Drona soube, quis demonstração, conferiu: Eklavya era melhor até mesmo que o próprio Drona.
— Eu te agradeço, Mestre! — disse Eklavya humildemente. E lhe contou sobre a estátua na floresta e o modo genial como transformou-se em arqueiro.

Todo Mestre, quando o discípulo fica pronto, você sabe, passa a ter o direito de pedir-lhe algo em troca.
— Dê-me um presente — disse-lhe Drona.
Mas Eklavya continuava pobre, nada tinha, exceto sua tigelinha de arroz e suas velhas roupas de algodão.
— Nada possuo que possa te dar, Mestre.
Drona então apontou-lhe a machadinha e pediu:
— Dê-me de presente seu polegar direito...
Eklavya nem vacilou.
E acabou seus dias varrendo as ruas da aldeia, enquanto Drona continuou sendo o melhor arqueiro dessa história.
Por isso eu digo:
— Cuidado com esses mestres que te pedem o polegar direito...
Não se ampute em nome de nada!
Jamais ofereça teu talento em sacrifício!

15.2.10

a vida é muito curta

Ontem alguém bateu à minha porta em busca de emoções.
— Como poderia eu negá-las?

Hoje trouxe a Eneida comigo. E um filé à parmegiana feito por Maria Rosa com carne escolhida pelo André da Trattoria, queijo do melhor, e molho natural de tomates frescos. Assim que cheguei, ao saber que Janaína não viria, abri um vinho vermelho, fiquei meia hora ouvindo La Traviatta e vendo
O Repouso no Egito, de Caravaggio. José segurando a partitura para que um anjo pelado toque violino, enquanto Maria, santíssima, sensualíssima, dorme recostada num tronco — e um Jesus meio loirinho no seu colo parece que baba um restinho emocionante de maçã.
Chorei em cima desse quadro.


Chorei muito em cima desse quadro — a pintura mais perfeita que já vi em toda minha vida. Dá pra gente sentir claramente o que José pensa com seus olhos cheios de amor. Depois, comi o filé, devagarzinho, meditando com Caravaggio, salpicando parmesão em tiras, e fui dormir. E sabe quem dormiu aqui comigo esta noite? — A Eneida. Ela foi se abrindo toda para mim, e eu, tocando-a com meus dedos, meu sorriso, meus olhares. Meio copo ainda mudo de leite no criado idem. Eneida dizendo tudo, mas eu — sem palavras! Só não entendo por que demorei tanto tempo para levar esse poema épico pra cama.
— Acordei excitado.
Como um Enéias que se apaixona por Dido.

E pensando:

As maiores e melhores emoções da minha vida eu as vivi em situações contrárias aos padrões morais ou legais estabelecidos. As grandes emoções estão ligadas à superação das regras. Quem faz as regras é geralmente um velho tolo, decrépito, que não entende nada de emoção nem de prazer. Quem faz as regras morais, ou quem cuida para que sejam obedecidas com rigor, é geralmente uma pessoa insensível às coisas do coração maravilhado.

Mas eu — Vogelfrei.
O pardal é um pássaro livre, canta só o que tem vontade — não canta para agradar. Faz algazarra com trinados em desordem. O diapasão do pardal é feito de alegria. Nem todo pardal canta como Edith: só aquele que tem charme, finesse, tesão. Nem todo pardal gorjeia a nota lá de 440 Hz: só aquele que é piaf. O pardal que se preza voa na corda bamba — não por ser corda, mas porque é bamba. Numa corda bamba a gente se testa, de cabeça, a toda hora. Há que se ter equilíbrio perfeito, medidas iguais, desejos profundos. Ninguém se enforca com corda bamba porque seus fios são trançados como se enredo, e a trama é delícia. Nenhum pardal vai querer tirar um fio da corda bamba para com ele fazer ninho, como fosse navalha. Pardal que se preza tem que ser livre, aventureiro, Vogelfrei. O pardal não tem belas plumagens, caçadores não lhe dão importância, ninguém quer tê-lo em gaiolas. Por isso ele pode dormir até mais tarde e depois cantar sem medo, sem preocupações. Todo pardal é fora da lei: Vogelfrei. E tem duas coisas que pardal não suporta: gravata e nó na garganta. Pardal não tem formalidade, não usa uniforme, não faz mesuras, salamaleques. Só quer saber de cantar, voar e ciscar. Recusa nó na garganta, assim como recusa gravata. Porque nó na garganta atrapalha a melodia, deixando-a triste, sem graça. Melhor seria ao pardal enforcar-se com as próprias cordinhas vocais.

— Se não pudermos falar pra fora, falar pra quê?

O canto que não se canta se transforma em veneno.
(E o pardal, por ser livre, sabe das coisas).
Lorca adorava pardais, assim como eu os amo na madrugada em que me acordo, pensando neles — nos pardais e em Federico del Sagrado Corazón de Jesús Garcia Lorca. Na verdade, esses pardais que só agora me acordam, o fazem sem querer — e pela segunda vez. A primeira vez que me acordaram foi com seu canto, e a segunda, com sua filosofia. Nas duas fui acordado por amor. Não para que me levante: quem é capaz de acordar duas vezes já vive de pé, ao menos por dentro. Nem todo pardal é pierrot. Mas todos são livres.
Hoje, Lorca, mil violinos “cabem na palma da minha mão”.

Porque hoje é só hoje — e agora é só você!

Quando acordamos de novo, no exato instante em que abrimos os olhos como se fossem a mente, nesse insistante momento, mínimo átimo; no primeiro milésimo do primeiro momento de um dia que nasce — no primeiro milionésimo do primeiro segundo — a gente descobre uma verdade tão simples como esta:
Hoje é só hoje.
(E o futuro é daqui a pouco...)
Então ficamos pensando. E já no segundo milionésimo do primeiro segundo — quando ainda nem começamos a fazer as contas — nesse instante único percebemos a importância fantástica de um ponto: de uma vírgula vermelha na agulha de Lorca.
— Hoje, é só hoje.
E ponto.
Hoje não pode ser mais. Eu deveria parar, mas o pardal continua. E quem descobre a suprema importância de uma vírgula não pode parar mais — e nem pode mais parar.
Já está a mil.
E à mil.
Um bem-te-vi se intromete no meu canto como se fosse uma crase, vem pousar no acento gráfico das minhas cadeiras para me dizer que, além da vírgula, tem outra coisa importante — o travessão. E me diz que entre os pardais há soldados, sargentos e generais. Mas eu falava do hoje, e quando ele retorna, não como tema mas como agora, acabo me espantando com a brevidade do tempo.
Sêneca dizia que a vida não é curta.
— E a maioria só dorme.

Deus, entretanto, é o maior despertador.
Ou você só acredita naquele que faz barulho e tem ponteiros?


Mas se a vida se encurta por nossa causa, temos que reagir. Sêneca, repito, dizia que a vida não é curta: nós é que a tornamos — e a desperdiçamos em afazeres inúteis, supérfluos. Se você aproveitasse o tempo enorme que perde no trânsito, no trabalho alienado, na falsa educação dos filhos, nas reprimendas aos escravos, nas conversas hipócritas, na fila do banco, no ônibus, no metrô, no avião, na Internet; se você aproveitasse o tempo que perde vendo tv, ou em papos furados ao telefone, agendas ridículas, reuniões absurdas, salamaleques, sermões, orações, noites de autógrafo; se você não precisasse gastar um tempo enorme corrigindo as barbaridades que comete contra si mesmo; se não precisasse ficar se explicando a toda hora para o patrão, para a patroa, para os pais, para os filhos, para os namorados; se não gastasse eternidades tentando encontrar uma saída nesse beco em que se meteu por burrice; se você fosse um pouquinho mais esperto, um pouquinho mais inteligente; enfim, se você usasse o cérebro e fosse livre — e dono do próprio nariz — a vida NÃO seria tão curta.
E seria uma verdadeira delícia.
Noventa e quatro anos de prazer absoluto não deixam de ser uma boa medida.
Bastariam...

Por isso é que.

Eu mantenho apenas três tipos de relacionamentos:
1. Os que me dão prazer;
2. Os necessários à sobrevivência; e
3. Aqueles que aumentam o conhecimento ou estimulam de alguma forma o intelecto e a criatividade.
(Só.)
Os demais — todos os demais — são dispensáveis.
Extremamente dispensáveis.

Porque a vida é curta — muito curta!
A vida é sêneca.
Não espere setembro para sentir o perfume de todas as Roses.
Por falar nisso, há em mim agora uma flor chamada Ela.
Inesquecível...

A vida tem basicamente dois caminhos: ou você segue o triste rebanho dos acomodados — e se submete feito escravo —, ou você escolhe o caminho da ousadia e da liberdade.
Qual é o teu caminho?


A vida é curta, a morte é longa.
Ainda que Sêneca me apareça agora dizendo “não”.
(Não me esqueço daquele homem casado, manco e grisalho.)
Estou aqui, ouvindo histórias que os pardais me contam, madrugada azul esvoaçante ensolarando. Lindas histórias, e fico com vontade de cantá-las pra você, como se fosse só. Ouço esses pardais porque alguém tem que ouvi-los, dar-lhes um destino aos cantos seus — se não, se perderiam. Preciso de longe reger a sinfonia inacabante, também sou Vogelfrei. Gosto de reger, mas também de cantar, voar, ciscar. E de amar — nesse ponto eu me supero: nasci pra ser pardal amante. Durmo cada dia numa árvore — e já me acordo em outra. Cada noite nas asas de uma fêmea; às vezes de duas — e até de mais — mas nunca de qualquer uma. Tem que ser livre, a fêmea, e gostar de ciscar, voar, cantar e amar, logicamente.
E se o nome dela for um outro, mesmo assim se chama Rose.
— Tem que ter fogo no rabo.

Mas nem todas cantam bem para sempre, porque nem todas cantam bem como Rose. De alguns cantos me canso. Vogelfrei, sou só um subversivo que hoje lê “Os Demônios” de Dostoiévski e me lembro da Casa dos Mortos. Me lembro do ranchinho de sapé. Una llovisna de encantos circunda mi hambre, como se fuera un velo de piedras. Goteros de luces que assisten instantes de muerte, y mágicos pirilampos dánçan el porvenir de mi vida a la vez. Tentando escrever em espanhol — como se fuera. Um chuvisqueiro de encantos rodeia minha fome, como se fosse um véu feito de pedras. Gotinhas de luzes acesas assistem aqueles instantes mortais, e mil vaga-lumes mágicos começam a dançar o futuro que eu tenho — de uma só vez.


É disso que falo, e se você não entende, melhor parar por aqui. Não quero ficar gastando sabão em cabeça de burro, outra vez. Só quero cantar minha história como se música. Afinal, sou um pardal de quem posso dizer com orgulho de rei coroado:
— Je suis pierrot.

Meus vícios e virtudes, e a quantidade que de cada devo ter — tudo isso foi por Deus determinado. E tenho dois lados: um forte e um fraco. A semelhança entre eles é que ambos são vencedores. Enquanto o lado forte vence com meu apoio, o lado fraco vence sempre sozinho. Porque dentro do meu corpo mora o próprio Mefistófeles. Abraçado a um menino Jesus.

14.2.10

Mudançar



Eu vivo a deliciosa incerteza a cada instante. E exceto a defesa radical da Liberdade absoluta, não tenho convicções inabaláveis.

Não tenho caminho certo, não ando por sobre um bloco de cimento frio, não gosto de muros, nem gosto de grades.

Eu decido se mudo ou se danço.

Mas adoro mudançar...

A instabilidade de uma corda bamba de seda à beira do abismo me excita.

Eu não quero ordens — eu quero música.

Ninguém me prende, ninguém me dirige, ninguém me sufoca, não aceito invasões.

Não ponho meu rabo entre as pernas, não abaixo a cabeça.


Não estou à venda.

Jamais darei procuração para alguém viver minha vida em meu nome.

Sou eu que faço as minhas escolhas.

Sou livre.




Este poema, como se pode notar, é um manifesto em defesa da Liberdade. Foi escrito por mim em 2005, pouco antes de abrir a NorteSul, num momento delicado da minha vida, em vários sentidos. Era preciso reagir — e eu tive sucesso absoluto no intento. Nessa mesma época comecei a escrever um novo livro, cujo título é Não estou à venda! E o prefácio será composto pelo poema acima e o seguinte texto:


Àqueles que não conseguem me compreender, não posso dizer nada, pois não chegarão de forma alguma aqui onde cheguei, e nem verão graça nas minhas idéias, nem perceberão sentido nas coisas que hoje faço — e certamente odiarão as palavras todas que eu profiro.

Àqueles que me compreendem, também não preciso dizer nada, pois podem chegar sozinhos às mesmas conclusões. Contudo, digo-lhes estas palavras e coloco-me desta forma, amorosamente, apenas para que sintam o imenso prazer estético que minha fala proporciona. Digo-lhes, com toda a sinceridade, apenas para que saibam que não estão sozinhos nesta impressionante loucura de ser livre.



E o primeiro capítulo será assim:


Fuja das pessoas perigosamente normais.


Toda noite, quando abro os olhos para dormir e ponho a consciência no macio travesseiro de flores e estrelas em que se converte a minha cama, vejo Deus acendendo seus belos refletores de vertigem sobre mim. Então surge como poesia no verso das pálpebras a última imagem do dia gostoso que acabei de viver.
Acontece que para dormir tenho antes que acordar, em todos os sentidos, duplamente. E já não conto mais ovelhas — eu conto lobos.

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que Deus me abandonou, esqueceu-se de mim, cobriu-me de misérias e de dor. Quase morri de desgosto, mas nunca cheguei a rezar: não tive coragem de humilhar-me perante a Vida. Rezar em busca de salvação é rebaixar-se demais. Talvez por isso mesmo — por meu intenso orgulho de herói — é que Deus agora me respeita tanto. Hoje em dia Ele é que se ajoelha ao meu lado e sorri.


Quem reza pedindo coisas nunca fala com Deus; só fala com o chefe do almoxarifado. Aliás, a religião pode nos levar a dois lugares distintos: a um estado de meditação — ou a um estado de ignorância. Se, ao rezarmos, nos recolhemos ao nosso interior mais profundo e nos esquecemos do cotidiano; em outras palavras: se, ao rezarmos, falamos de amor com um Deus que nos habita — isto é meditação. E é louvável. Todavia, se rezarmos pensando falar com uma entidade absurda, sentada além das nuvens, e lhe pedimos tranqueiras e miudezas; e lhe solicitamos que cuide de nós, ou dos nossos, e que nos proteja dos perigos da vida, etc. — isto é apenas burrice.

Como se vê, religião pode ser meditação — ou estupidez.

Ainda incomoda-me um pouco falar em Deus na terceira pessoa do singular. Mas são belos alguns aspectos da mitologia cristã. Por exemplo, a concepção de Jesus. Maria, virgem fecundada por um Espírito, é uma imagem muito mais graciosa e poética — convenhamos — do que se fosse grosseiramente engravidada logo após o jantar por um velho marceneiro com seu corpo cansado, talvez sonolento e coberto de pó de serra. Ao contrário, o orgasmo que a Virgem sentiu naquela vez só podia ter gerado um Deus! As maravilhas, o prazer e a gostosura que o Espírito Santo lhe proporcionou aquela noite; a delicadeza, o afeto e a sensualidade com que o Espírito deve ter tocado no clitóris de Maria — tudo isso só podia dar mesmo no que deu. E o único José que eu aceitaria como pai humano de Jesus é aquele que o jovem Caravaggio retratou em "O Repouso no Egito", com um magnífico tratamento clássico de luz.

Mas essa é outra história.

Tem mulher que se engravida por acidente, sem amor, e quer gerar um gênio. Não dá! É completamente impossível. Conceber filho sem orgasmo, sem amor e sem poesia, nunca vai gerar um Jesus — gera geralmente um babaca.

Em verdade, em verdade vos digo: Esse tal de “Espírito Santo” era um Grande, um Enorme Orgasmo Divino!
Com todo respeito.


Respiro fundo, sinto que Deus respira comigo meu sopro, e me lembro do Manual da Separação, página 15, onde se pode ler que Jesus gostava muito de festa, tanto, que certo dia Ele estava numa delas e acabou o vinho. Foi então que, por insistência da Mãe, fez seu primeiro milagre público. Em verdade, um milagre divino: transformou água em vinho. E bebeu a noite inteira. Jesus adorava um bom vinho. Gostava de festas e de mulheres. Nunca acumulou dinheiro, não tinha nenhum patrimônio, não tinha casa própria, nem uma esteira onde sofrer um ataque. Não usava cueca, não se casou, não constituiu família, jamais trabalhou... O Filho-da-Mãe era filho de Deus...

Jesus falava através de parábolas — que em grego quer dizer “desvio do caminho”. Ele falava dessa forma por uma razão simples: era para não salvar todo mundo, mas só quem tivesse inteligência para compreendê-las. As parábolas de Jesus são ícones.
Ícones são signos produtores de informação.
(Mas essa é outra semiologia, sussurram-me Décio e Haroldo.)
O certo é que Jesus ouvia vozes — e as seguia.
Ele arriscava.
Um gênio sempre arrisca!
Os espíritos falam para todos — mas só o gênio consegue ouvi-los. Só os gênios e os loucos são capazes de lhes entender os códigos e traduzir-lhes as metáforas. Jesus, o Louco, ousava — isso é inquestionável. Se Jesus seguisse só os conselhos dos mais velhos, se seguisse só o que a tradição Lhe mandava, teria sido apenas mais um marceneirozinho medíocre na pobre e devastada Galiléia.


Maria de Nazaré, a Santíssima, vocês sabem, era filha de Ana e Joaquim. Aos doze anos ficou noiva de um vizinho chamado José, mas engravidou antes de se casar: escândalo na família judia, crime a ser punido com apedrejamento. Foi salva por Gabriel à beira de um poço, e pela compreensão de José, que também acreditava em anjos. Além de Jesus, teve outros filhos, mas nenhum desses com o Espírito Santo: Tiago (que se transformaria num dos primeiros bispos cristãos, e que foi depois executado pelo filho de Herodes em Jerusalém), José, Simão, Judas, Ana e Lídia. Os irmãos, quando crianças, não gostavam muito de Jesus.
Não preciso nem dizer por quê.
Chamavam Ele de “Louco”.

Aos seis anos Jesus foi buscar água no Rio da Prata e quebrou a moringa. Teve que trazer a água num saco de pano que fez com a própria camisa. Maria nem se espantou. Mas o primeiro milagre público foi feito a pedido da Mãe, numa festa, quando Ele transformou água em vinho. Podia ter sido em suco de laranja, ou até mesmo em leite, mas isso não causaria tanto impacto.
Tinha que ser em vinho!

Quando José morreu, deixando Maria com um monte de crianças, Jesus, primogênito, teria de assumir a marcenaria. Porém, entre ser negociante ou transformar-se em Deus, Jesus não teve dúvidas: saiu de casa, e foi acabar de matar seus pais na estrada... E criar histórias para Tomé escrever um livro.
O resto vocês já sabem — e Jack Kerouac também.


Mas não basta mudar só de pensamentos: o que devemos mudar — mesmo! — é a nossa própria maneira de pensar.
Todos os dias.


Eu quero neste livro falar de amor, de solidão, de marxismo — e começo com Jesus. Ele também foi amante, solitário e comunista. Quero também contar um pouco da minha vida, debulhar a espiga da minha história e, fundamentalmente, defender a lógica da Liberdade. Mas, como citei Tomé, quero esclarecer um ponto. No início havia mais de cem evangelhos, concebidos por diversas comunidades cristãs. Então, no ano de 325, no Concílio de Nicéia, os bispos escolheram só quatro deles. Dizem que colocaram os volumes no altar, invocaram o “espírito santo” e deu-se o milagre: quatro ficaram onde estavam e os demais caíram no chão... Outra versão diz que uma pombinha entrou no recinto, pousou no ombro de cada bispo e soprou-lhes o nome dos escolhidos: só Mateus, Marcos, Lucas e João. Dessa forma foi editada a Bíblia — essa mesma que você hoje diz que é “sagrada”. E foi assim que o Evangelho de Tomé, entre outros, ficou de fora.
Eliminaram o de Tomé, justo o melhor.
Santa ignorância!


Vamos terorizar um pouco. No início a religião não entrava em conflito com a ciência, e tudo estava bem entre as duas. Mas a ciência começou a ir para um lado, e a religião — para nenhum. (Não se esqueçam: a base da Bíblia é a mitologia da Suméria). Deus pode ser as duas coisas: metáfora, ou mentira — e você escolhe em qual delas pode crer.

Como metáfora Deus é perfeito.
E como mentira, também.

13.2.10

Patricia e Suzana — de novo

Patrícia servia-me a morte em bandejas de ouro, e Suzana dava-me a vida na palma da mão. Patrícia era uma espécie de Fedra, e Suzana, Ariadne. Uma delas queria enforcar-me, delicadamente, com cordinhas de seda; a outra deu-me os fios de amor com que me salvei do labirinto.

As duas diziam me amar...
Mas a primeira me queria boi, e a segunda — Minotauro.

Com qual delas você acha que eu fiquei?


Com nenhuma das duas, é claro!

Porque, de Patrícia, eu tinha que me salvar correndo, para enfim poder viver. E de Suzana, eu só queria ter belíssimas lembranças. Mesmo porque seria um horror deixar que o tempo transformasse em tédio aquela relação brilhante: por isso eu e ela nos separamos no pico.

Tudo em nome do Amor.
E da Liberdade.



Pego agora o copo de Blossom Hill, branco, e passo a lembrar de Patrícia e de tristezas. Na noite em que veio me matar, tomei duas garrafas desse vinho — e depois dormi. Paritosh ficou na sala, escrevendo. Acordei de ressaca e assustado por ser tão louco. Ela talvez não quis matar um inocente poeta bêbado: só queria matar o homem que eu amava (*). Por ciúmes. Patrícia veio para matar o Deus que será meu professor. Mas, antes da minha morte, eu sei, ela só queria o meu amor.

Era o princípio do fim.

Foi quando escrevi o poema: "Eu amo vocês duas". Patrícia o leu e não gostou. Expliquei — com cara de espanto: "Será preciso que eu diga que o nome da outra é Liberdade?"
(Esse poema está lá no início deste livro.)
Devia ter dito: "Se você não entende, é melhor parar".

Como já disse, Patrícia era uma espécie de Fedra, e Suzana, Ariadne. Uma delas queria enforcar-me com cordinhas de seda; a outra deu-me os fios de amor que me salvaram do labirinto. Por isso La Paz é hoje uma espécie de Naxo, e o altiplano da Bolívia parece agora um pedaço da Grécia.
Nosso amor virou Mitologia.

— Não se corta o polegar de um arqueiro!

Um dia vou te contar a história de Eklávia, que cortou o próprio polegar a pedido do mestre. Fico pensando no meu catombinho. Antes de questionar-me, filosoficamente, "para onde vou?", ou "de onde vim?" — me pergunto: Existe um onde para onde eu vá? Existiu realmente um onde, de onde eu possa ter vindo? Será que vim?
Será que eu quero — mesmo! — ir?


Como não me apaixonar por quem costuma chamar Beethoven de “o Ludwig”? Além do mais, linda, inteligente, charmosa, sensível, morena, sensual, doce, gosta de vinho, íntima da mitologia grega, lê muito, vai sozinha a teatros, visita museus, fala de Paganini como se falasse de um irmão, não fuma, e é extremamente gostosa. Aliás, foi Janaína quem primeiro me contou detalhes da biografia de Nicolò, quando ele vagou pelos mares com o caixão do pai morto.
Como não amar alguém assim?
Deus me mataria no ato se eu desperdiçasse um Esplendor.


Escurece lá fora. Fernanda não veio, acabou o vinho branco, começou a chover e o meu time tá perdendo. Só me resta tomar um tinto — que para mim é sempre “vermelho”: hoje Baron d'Arignac. Vinho de aroma intenso, bastante perfumado, lembrando nostálgicas flores de pêssego, almíscar, romance. Depois vou comer dois bifes acebolados com arroz, estudar alemão, ler algumas páginas do Retrato, assistir ao Canal Mundo ou Discovery por meia hora, esperar mais um pouco, ver um filme, e concluir entusiasmado:
— Este domingo é o dia mais feliz da minha vida.

Que bom que Fernanda ainda não veio: porque estou aqui, tão entretido comigo, que qualquer coisa outra que não eu traria turbulências. Uns dois ou três orgasmos a menos — ou mais — não farão muita diferença hoje. Daqui a pouco vou arrumar o colchãozinho de solteiro lá fora no terraço, e dormir ao relento. Homeless.
Sem tirar e nem pôr, é isso que escrevo, é isso que faço na vida, todo santo dia. Amo, escrevo, como, bebo e durmo — sempre acordado comigo. Amores diferentes — e muitos; comida diferente — e pouca; palavras diferentes — e todas. E a cama onde me deito, desarrumada sempre de forma diferente, ora no quarto, ora lá fora (se a chuva choverando parar de chuviscar).
Mas, bebida — só vinho!
Que mais posso eu querer da Vida?

(Publicar esta obra prima por uma grande editora. Talvez Palas Athena — que também já editou Heinrich Zimmer e cujo diretor é o meu amigo “Pé-no-barde”, Flávio Rett, grande humanista que um dia me disse: “Não posso saciar minha fome enquanto existir um outro ser humano com a dele”. Estávamos no Restaurante Mário, comendo um enorme filé à parmegiana e o menino parado na porta tinha os olhos em forma de queijo. Então Flávio chorou.)

Pois, bem: comi a comida que sonhei e continuo tomando o vinho vermelho. Fernanda não veio mesmo. E releio, pela vigésima vez, o comecinho do Retrato: "Certa vez — e que linda vez que isso foi! — vinha uma vaquinha pela estrada abaixo, fazendo muu! E essa vaquinha, que vinha pela estrada abaixo fazendo muu!, encontrou um amor de menino chamado Pequerrucho Fuça-Fuça..." E foi assim que James Joyce começou. Eu não teria coragem intelectual de começar um livro desse jeito. Bem, disse ter lembrado de Patrícia, e vou escrever um pouco sobre ela, sobre o tempo que namoramos. Falei que tentou certa vez me matar — é verdade. Talvez não tivesse muitas razões, mas. Patrícia também era uma estrela. Também tinha cinco pontas prateadas, também me feria com seus raios lúbricos de amor. Por isso comecei a amá-la como se ama uma estrela:
— De longe!

Isso depois.
Porque antes, no início, ela fora perfeita.
Nos dois primeiros anos do nosso relacionamento, eu a amei como se amasse-me: ela era tudo pra mim e eu fazia tudo por ela. Eu a amei como jamais teria sonhado ser possível amar tanto. A mulher mais perfeita que havia conhecido até então — sem dúvida. Patrícia também era uma estrela, mas Suzana tinha algo mais. Enquanto Patrícia começava a me cobrar o "compromisso", cobrar o cumprimento de uma certa promessa que havia, suspensa no ar, de casamento, casa própria — e, principalmente, aliança no dedo anular — com Suzana eu brincava. De boneca, de carinho, de amor.
Enquanto Patrícia tentava mostrar-me as vantagens de se ter uma base econômica sólida, uma vida estável — Suzana me fazia ver a vida como se fosse um enorme Playcenter. Patrícia foi ficando chata; Suzana sorria cada vez mais. Uma queria me plantar no solo e esperar que eu desse frutos; a outra me virava de ponta cabeça, e me transformava em jardim. Jardim, flores, perfume, vinho, tesão — e brinquedo!
(Essas coisas.)
Como se vê, o amor é inexplicável, em todos os sentidos.
Tanto quando morre, quanto como nasce.
A parteira do amor é também o seu próprio coveiro.
— Quando você vai criar juízo? — Patrícia me perguntava, com olhares de cobrança, uma fatura em cada mão, e um jeitinho de fiscal. Ela queria, e acho que até sinceramente, o "melhor" para mim — do seu ponto de vista. Queria que eu fosse um empresário bem-sucedido, responsável, rigoroso seguidor de regras, normas, leis, e talvez até um bom "pai de família". Gostava de me apresentar aos seus parentes como se fosse “o máximo”.
Mas eu queria mesmo era ser "o mínimo".

Enquanto Patrícia queria "o melhor" para mim, Suzana queria que eu fosse um poeta romântico, louco, exagerado — apenas. Eu, de minha parte, nunca tive a pretensão de ser indispensável. Só queria fluir. Voar. (Enquanto ainda houvesse algum vento soprando sobre mim). Mas, em nome da verdade, repito: — nos dois primeiros anos do nosso relacionamento, Patrícia foi o maior amor da minha vida, em quase todos os sentidos. Nesse tempo, dediquei a ela tudo o que fiz. Eu a amava, mesmo. Com pureza de menino Jesus. Era sincero quando lhe dizia "eu te amo", e sincero também naqueles momentos trágicos, em que só pude amá-la em silêncio gelado. Tenho certeza de que ela sabe, ainda hoje – cinco anos depois – que isso é verdade. Acontece que Patrícia, com seu amor por mim, foi seguindo por um lado e eu, descambando por outro.
É a vida.

Aliás, repito, excesso de juízo nos leva à loucura...

Como todo mundo que busca crescimento espiritual, eu tinha dois lados: o sério e o gostoso. Patrícia sempre queria o primeiro. Suzana, o gostoso. Patrícia queria, primeiro, o eterno — o estável. Suzana queria, primeiro, o segundo — o instável.
— O agora!
Enquanto Patrícia adorava aquele burguês que morava no meu corpo, e me cobria de roupas e presentes — Suzana me despia, adorava meu lado porra louca, segurava minhas mãos como se me pegasse o... coração! — e me dizia, olho no olho:
— Goze a vida, Edson. Goze à Vida!
Patrícia queria certezas — Suzana me jogava no abismo.
Patrícia significava segurança, garantia.
— Suzana quer dizer Aventura!
Então tive que optar com veemência.
Mas, no fundo, não fui eu quem fez a última escolha: foi Deus que me empurrou. Foi Deus que um dia me abraçou, e disse:
— Não vacile, Edson. É agora — ou nunca mais!
(Deus é foda: quando ele quer empurrar a gente para um lado, não há nada que possa fazê-lo mudar de idéia.)
Então, saltei.
De cabeça — no coração do mundo. Porque a vida só existe no vazio entre o topo de um penhasco e o chão.
Como eu disse, Patrícia foi uma estrela, e acho que ainda é, para seus atuais amores. Se, aquela época, eu estivesse querendo uma mulher perfeita para me casar com ela, uma mulher bonita, inteligente, honesta, trabalhadora, charmosa, de boa família — Patrícia tinha todas as qualidades para ser essa extrema perfeição.
Mas eu queria mais.
— Eu queria era seguir o que Deus mandou.
(Sem falar no que o Diabo me dizia.)
E Suzana foi uma espécie doce de Pandora invertida que veio salvar-me do tédio e da morte. E que não trazia só uma “caixinha” — trazia um enorme container de gostosuras, quase todas es-candalosas. Suzana transportava o resumo dançável do infinito para mim.
Patrícia continuava uma estrela, mas Suzana cintilava.
E como eu gosto de inocência — só vibro com ternuras.

Naquele tempo as duas eram irmãs, mas com diferenças significativas. Por exemplo, quando me mudei para o Guarujá aluguei uma bela casa. A primeira vez que Suzana veio aqui, pegou minhas mãos e sussurrou: "Nossa! Que delícia jantar à luz de velas ao lado da piscina, a cachoeira sussurrando só pra nós dois". Mas Patrícia, alguns dias depois, ao ver a mesma geografia, teve reação muito diferente: "Nossa! Que lugar lindo! Imagine uma big festa aqui..."
Ou seja: uma queria intimidade; a outra — propaganda.
Ambas nasceram no mesmo bairro, Higienópolis, mas, enquanto Patrícia era meio provinciana, Suzana sempre foi cosmopolita. O futuro dirá: uma delas vai se contentar com Morumbi ou Tatuapé; e a outra — morar em Paris.

Sem querer trocadilho, dei-lhe o livro "O Eu Dividido", de Laing. E a dedicatória foi esta: "Patrícia, indivíduo significa o que é não-dividido. Sou-te, todo. E solto, como o Sol — e o Céu. Te amo".

E eu a amava, mesmo!

Mas o ciúme é uma doença mental.

Era o dia 03/05/1998 e finalizei assim:
"É melhor errar a favor da Liberdade do que contra ela".
Eu queria só o máximo, nada mais — e nada menos.
Nosso relacionamento tinha tudo para dar certo... Por isso deu no que deu: estávamos nos separando. Parece filme: sessão de cinema não dura a vida toda. Assim como visita a museu, etc.
Nada dura a vida toda.
Só a própria vida dura a vida toda.
Veja bem: numa sessão de cinema, quando termina o filme as pessoas não ficam lá, sentadas, ansiosas e se perguntando “por que não deu certo?”. Elas simplesmente se levantam — e vão embora.
Assim, o relacionamento.
Assim, a vida.
Só a vida dura a vida toda!

“Más sabe el diablo por viejo que por diablo.”

Houve um dia, dois anos depois. À tarde, saí com Suzana, em todos os sentidos. À noite Patrícia chegou, amorosa, perfumada. Fui inundado por tesão e dúvidas. Naquela noite abracei-me à própria fidelidade e não traí Suzana. No dia seguinte, porém, Patrícia chegou antes, talvez por suspeita de alguma coisa. Fizemos amor, e foi bom. Mais tarde vi Suzana outra vez. E como nesse caso não se colocava a questão de ser fiel no mesmo dia — fizemos amor, também. Ainda mais amor fizemos.
(E mais: eu vi que isso era bom.)
Senti meu coração batendo mais forte no peito de Suzana, como se aqui fosse o lugar que sempre havia buscado. Um tipo diferente de paixão graciosa começava a tomar conta de mim. Foi este o primeiro momento em que meu amor se desvia, como se um corpo de massa mais densa puxasse a luz que arremesso.
Não era uma disputa: eu somente me repartia.
Por fora era um, mas por dentro — dois.
Patrícia, ela mesma, por si, foi escorregando pouco a pouco para o centro do meu segundo coração. O primeiro era de Suzana, e até hoje só Suzana mora nele — ninguém mais. Enquanto uma já começava a cobrar-me coisa mais séria, na outra eu só via gostosura.
— Essa a maior diferença.


Patrícia também é uma estrela — mas agora só Suzana cintila. Suzana é um imã que atrai, e meus olhares, magnéticos, colam nela. Quando tocam seu corpo, penetram, mas quando encontram os dela, brilhantes, retornam pra mim. E me trazem de volta promessas de amor, curvos desejos, convites sinuosos e pessoais. Seus olhares são sempre R.S.V.P. Olhos que insinuam, e isso acorda o sino que tenho no peito. Badalo — e me dobro aos seus pés.
Me jogo profundo.
Há no ar um prenúncio de escândalo, de risco, de amor.
Uma espécie louca de magna dança.
Quando as duas estão juntas, não as separo: amo-as inteiras, ambas, como se fossem únicas. Mas, quando uma vem antes da outra, amo-a, primeira. E quando a outra vem antes de uma, amo mais a que vem depois. Patrícia, repito sempre, também é estrela.
— Mas só Suzana cintila.


(*) O homem que eu amava era eu.
Ainda é.


Leia aqui um pouco mais.